sábado, 28 de novembro de 2009

Arqueologia da sociedade moderna na América do Sul. Cultura material, discursos e práticas


Francisco Silva Noelli
Professor do Departamento de Fundamentos da Educação – UEM/PR



Zarankin, A. & Senatore, M. X. (orgs.). Arqueologia da sociedade moderna na América do Sul. Cultura material, discursos e práticas. Buenos Aires, Ediciones del Tridente, Colección Científica, 2002, 127 pp.

A arqueologia histórica, especialmente na literatura mais recente, vem sendo definida como o estudo da formação do mundo moderno a partir da expansão européia, coincidindo com a consolidação do sistema capitalista e de uma nova ordem social. Essa abordagem experimentou grande avanço nas duas últimas décadas, com um vertiginoso crescimento qualitativo e quantitativo em termos teóricos, metodológicos e de pesquisas em todo o mundo. Pode-se dizer com tranqüilidade que é uma das atuais subdisciplinas arqueológicas que mais se desenvolve, debate-se e se aperfeiçoa, estando presente no epicentro das discussões mais polêmicas da atualidade, na ponta dos avanços mais relevantes da arqueologia internacional. Também encontramos seus membros entre os mais fervorosos defensores da preservação do Patrimônio Arqueológico, da consolidação da Arqueologia Pública e do diálogo com outras disciplinas, como a antropologia e a história.

Na América do Sul, ainda que de forma mais lenta, a arqueologia histórica também experimenta um significativo crescimento, mais em qualidade que em quantidade, ainda com um percentual reduzido de adeptos em relação às demais especialidades da arqueologia. Contudo, grande parte de seus praticantes estão no mesmo nível da vanguarda internacional, incluindo alguns que se alinham entre os pioneiros da subdisciplina. É provável que nos próximos anos a magnitude de suas pesquisas atraia novos talentos e contribua decisivamente para o incremento da arqueologia histórica no continente, que possui um potencial excepcional para essa abordagem.

Arqueologia da sociedade moderna na América do Sul representa o que há de melhor em termos teóricos e práticos na mais atual arqueologia histórica. A coletânea de trabalhos apresenta as principais linhas teóricas, servindo como um guia didático para especialistas e iniciantes, bem como demonstra a aplicação prática de alguns métodos de análise e interpretação dos contextos arqueológicos, da cultura material e da ordem social e ideológica.

A introdução, "Leituras da sociedade moderna. Cultura material, discursos e práticas", da lavra dos organizadores do livro, Andrés Zarankin e María Ximena Senatore, é uma excelente referência sobre o funcionamento das engrenagens teóricas da arqueologia histórica. Ali está ordenado o escopo que sustenta a disciplina, podendo ser considerado como o seu programa de trabalho e a agenda de debates fundamentais, um consistente ponto de partida para aqueles que iniciam e para aqueles que precisam de reciclagem.

Na mesma linha, como demonstrativos do escopo e da agenda em construção, estão os artigos de Pedro Paulo Funari, "A arqueologia histórica em uma perspectiva mundial", e de Tânia Andrade Lima, "O papel da arqueologia histórica no mundo globalizado". Trata-se de duas breves, mas refinadas, apresentações do que se está pensando e fazendo na ponta que levam objetivamente ao cerne da matriz teórica e política da arqueologia histórica.

Os artigos de Camila Agostini, "Entre senzalas e quilombos: 'comunidades do mato' em Vassouras do oitocentos", de Luís Cláudio P. Symanski, "Louças e auto-expressão em regiões centrais, adjacentes e periféricas do Brasil", de Marco André T. Souza, "Entre práticas e discursos: a construção social do espaço no contexto de Goiás do século XVIII", de María Ximena Senatore, "Discursos iluministas e ordem social: representações materiais na colônia espanhola de Floridablanca em San Julián (Patagônia, século XVIII)", além de relevantes demonstrações e detalhamentos do escopo, produziram uma amostra do que há de mais atual em termos de metodologia de pesquisa e da adequada relação entre fontes arqueológicas e históricas, analisadas com sofisticação e intenso uso de idéias e fatos econômicos, sociológicos, antropológicos e de outras disciplinas científicas.

Agostini analisa, com base em um estudo de caso, o processo de constituição de comunidades negras em meio à experiência do cativeiro na zona rural sul-fluminense no século XIX, e relê a noção de "comunidades escravas" presente na historiografia norte-americana. A abordagem enfatiza os laços de amizade e vizinhança, as experiências de mobilidade, incluindo a violência, as tensões e os conflitos ocorridos em comunidades desse tipo, revelando a experiência cotidiana do cativeiro afro-brasileiro na formação das comunidades escravas do Vale do Paraíba e na socialização de africanos e afro-brasileiros em uma sociedade escravista. O estudo também dá ênfase à percepção do contexto cotidiano dos trabalhadores rurais e da formação de áreas de culto religioso, visando o reconhecimento dos processos inerentes às diferentes escalas de tempo a partir da análise de variadas fontes de informação.

Symanski verifica como a presença de louças no contexto arqueológico oitocentista de regiões centrais, adjacentes e periféricas, associadas com uma refinada análise da documentação histórica, pode revelar padrões de vida burgueses antes da constituição de uma classe tipicamente burguesa no Brasil. São analisados sítios urbanos e rurais de Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Bahia, sob uma refinada metodologia que tem por objetivo decodificar as complexidades do consumo em locais habitados por pessoas de diferentes condições sociais. O principal resultado foi mostrar que houve usos distintos dos bens de consumo, de acordo com os diferentes grupos que os usaram, ao contrário da generalização que imaginava os bens com as mesmas funções em contextos variados. Isso abre espaço para pensar que os discursos ideológicos também eram assimilados em graus diversos por grupos sociais distintos.

Souza, ao analisar as diferentes escalas da construção de novas relações sociais num dos limiares da geografia colonial portuguesa, teve por objetivo perceber os modos como se articularam as relações entre grupos e indivíduos de vários setores do espaço da capitania de Goiás oitocentista. O principal resultado foi mostrar que no âmbito de um território fundado de forma deliberada e consciente, sob uma assimetria social que reunia diferentes interesses e motivações, criou-se uma estratégia que permitiu a afirmação de grupos socialmente desprestigiados que reformularam seus referenciais culturais de origem, "criando novas maneiras de lidar com o mundo".

Zenatore estuda a formação de uma comunidade colonial em torno de uma fortificação na inóspita Patagônia meridional, mesclando a análise dos dicursos de época cristalizados no papel com as evidências do contexto arqueológico. Dessa forma, apresenta com sofisticação um estudo de caso sobre o processo de formação do plano urbanístico de um núcleo colonial, mostrando como novas hierquias predeterminadas das relações sociais aparecem representadas na divisão e no uso dos espaços públicos e privados em San Julián.

A obra em questão é de grande relevância para os estudos das sociedades modernas na América do Sul, ensinando e exemplificando com precisão as abordagens e os métodos mais contemporâneos da arqueologia histórica.

Revista de Antropologia - USP

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