segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O desafio ambiental


PORTO-GONÇAVES, Carlos. Walter.
O desafio ambiental. Rio de Janeiro:
Record, 2004, p. 182.

Fernanda Alexandre
Licenciada em Geografia pela UFMS/CPTL, mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Geografia, Instituto de Pesquisas Sócio-ambientais – UFG – Goiânia – GO.
Email: nanda_allexande@yahoo.com.br.

Com pautas relativas e refletivas, fomentadoras do debate ambiental contemporâneo, pautado em relações e interesses capitalistas, a obra do professor e geógrafo Carlos Walter Porto Gonçalves, olvitra analisar a natureza e a sociedade em suas diferentes culturas, enquanto relações intrínsecas. Relações estas, que por parte de alguns seguimentos da sociedade, tornaram-se de apropriação, domínio, uso e exploração.
A obra é estruturada em duas partes. Na primeira intitulada “A natureza da globalização e a globalização da natureza”, o autor discute o poder fragmentador da globalização frente aos lugares, o “mundo em pedaços” resultante em menos relações identitárias das pessoas com os lugares. Estamos ligados no mundo, somos de todos os lugares por meio das imagens. Ressalta as atribuições que a técnica aliada ao poder das imagens com interesses políticos provoca, sendo principalmente, o rompimento de fronteiras territoriais e especialmente culturais, visando maior homogeneização de culturas predominantes.
Seguindo com a discussão a respeito das técnicas. De acordo com o autor, o conjunto de técnicas desenvolvido pelo homem, apresenta desde características jurídicas, pedagógicas e especialmente políticas. A principal função desse conjunto, numa sociedade fundada na propriedade privada da natureza é dominar os homens para estes submeterem a natureza como fonte de exploração e produção de riquezas. Este uso dá-se principalmente na idéia de desenvolvimento.
As técnicas pautaram-se na maioria dos casos de apropriação e exploração dos recursos, aprimorada ao longo dos anos. São estas, um sistema organizado, ordenado, visando um maior controle sobre seus efeitos, constituídas por relações sociais e de poder contraditórias trazem embutidas em si as contradições sociais. O autor considera ainda que a relação do homem com a natureza esta é embasada em significações. “Não existe relação com a natureza a não ser por meio de um conjunto de significações socialmente instituído e, portanto possível de ser reinventado num processo aberto, complexo, contraditório e indefinido sempre em condições históricas e geograficamente determinadas”. (p. 44).
Prosseguindo com a reflexão a respeito das questões do desafio ambiental, o proposto e almejado “desenvolvimento”, é visto contrário ao meio ambiente, pois, é colocado como sinônimo de dominação de natureza. As críticas ao “desenvolvimento” vieram primeiramente dos críticos marxistas, que o viam como uma imposição a todos e não como uma opção.
As críticas pressupunham que o “desenvolvimento” visa uma igualdade, mesmo em culturas e povos diferenciados, e nem sempre buscou igualdade perante a cultura europeizada e americanizada apresentada como supremas em decorrência do processo de colonização em todos os continentes.
O desenvolvimento e a globalização ganharam impulso quando as oligarquias financeiras e industriais aliaram-se a importantes setores das burguesias nacionais desenvolvimentistas do "Terceiro Mundo”. E sob a gerência do Banco Mundial foram realizados investimentos em construções como grandes hidrelétricas, abertura de estradas, translação de indústrias, colonização, revoluções e “modernização” nos campos agrários especialmente da América Latina. A fórmula e as conseqüências desse modelo de desenvolvimento adotado pelo capitalismo, a partir dos anos de 1960- 1970 foi alvo do movimento ambientalista no mundo.
Carlos Walter discorre que o ambientalismo, como todo movimento, também possui seu berço político; a partir de manifestações e denúncias a respeito dos riscos que a humanidade e o planeta sofriam por falta da proposição e de limites de intervenção humana sob a natureza começou a ganhar reconhecimento. A partir da década de 1960, se deu o crescimento e expansão, pelo mundo da preocupação do risco global.
Apesar dos efeitos locais, os olhares voltaram-se para as situações de pauperismos de alguns países. Estes foram erroneamente indicados como causadores dos mais graves problemas ambientais no mundo, quando na verdade são os paises ricos e ditos “desenvolvidos” os provocadores dos maiores males para com a natureza.
Ainda nesta primeira parte da obra, a lógica das relações capitalistas é discutida, o modo como esta procura apropriar-se da natureza em todos os sentidos. A sociedade capitalista mercadoriza “tudo”, o mercado capturou a ciência, a qual se tornou força produtiva do capital, privatização do conhecimento científico, perda da autonomia do Estado para os grandes grupos corporativos.
Devido à complexidade do ambiente, a lógica empresarial não é a soma das partes. O ambiente é formado por partes desiguais onde à economia moderna define a apropriação, o uso do produto considerando como recurso, riqueza e escassez. A disputa territorial pelos elementos considerados sob essa ótica implicam em disputas territoriais configurando a geopolítica no desafio ambiental contemporâneo.
Na segunda parte da obra, a qual é nomeada “O homem”, o debate ambiental contemporâneo é reforçado com a questão alimentícia, considerando que ações como a patentiação, a genética e o conhecimento de alimentos, têm levado os países a tomarem posições avancivas nesse sentido. A prática da monocultura tem contribuído à insegurança alimentar, se passou de uma agricultura camponesa para uma agricultura capitalista. A expansão agrícola, e em conseqüência o uso exacerbado de fertilizantes vem provocando a contaminação das águas superficiais e subterrâneas. Por sua vez o uso inadequado dos solos, acarreta na retirada da cobertura vegetal deixando-os mais propícios aos fenômenos erosivos.
A natureza também passou a ser comercializada como forma de pagamento á divida eterna. Grupos empresarias, de segmentos como a extração de bauxita e a indústria de papel e celulose, indústrias altamente poluidoras, se apropriaram dessa situação para realizar suas transferências para os países de Terceiro Mundo.
Essas indústrias segundo o autor, se beneficiam de terras abundantes e mais baratas, da maior incidência da radiação solar, onde sua matéria-prima tem crescimento mais rápido e, então, obtém um rendimento físico por hectares muito maior nas regiões temperadas. E por fim, outro benefício seria a relativa proximidade de seu consumo produtivo.
A lógica governamental é enfocada, principalmente por sua transformação, com a criação de leis de gerenciamento dos recursos e da natureza em si. Essa mudança se dá devido à nova configuração das relações sociais de poder da geopolítica mundial. No Brasil um exemplo dessa mudança tem-se com a criação das novas Unidades de Conservação, nos anos de 1970 e 1980 estas, priorizavam os direitos das populações locais, concernente ao gerenciamento. Atualmente é conduzido por ONGs e órgãos governamentais.
Seguindo a reflexão do autor, ainda tem-se o aumento exacerbado das Reservas de Patrimônio Natural (RPPNs). Áreas de grandes propriedades, geralmente latifúndios, que impedem o acesso das populações locais os recursos naturais. A Legislação propõem o uso dessas terras, ao se transformarem em RPPNs, como prestadoras de serviços ambientais à sociedade como um todo, sejam eles de base para pesquisas cientificas, ou educativos.
No entanto, o posicionamento e apontamento do autor da obra, é no sentido indagativo, porque essa prática ambiental nas RPPNs é realizado sem que haja uma democratização do controle e gestão dos recursos naturais. E ainda, por que são as populações originárias, camponesas e afrodescendentes, aquelas que não têm suas práticas culturais voltadas para o valor de troca, que sofrem restrições estabelecidas por um discurso apresentado em nome do “uso racional dos recursos naturais”.
O autor chama a atenção do leitor, para a desordem ecológica, mais evidente em alguns elementos do ambiente, como a água. Á água é uma questão complexa, especialmente para as populações mais pobres. Antes, essa era manejada pelas oligarquias latifundiárias, pelo poder regional e políticas populistas. Atualmente o “ciclo hidrológico” foi alterado pela forma de uso que a sociedade confere a água, não considerando muitas vezes o significado e importância dessa matéria.
Finalizando essa importante obra de alerta e reflexão, para a comunidade em todos os seus seguimentos, sobre os meandros implícitos e explícitos da questão ambiental, é ressaltado, que o desafio ambiental contemporâneo, implica em uma verdadeira revolução cultural, com a participação dos diversos grupos sociais nas questões e decisões ambientais, pois, é o único a ser colocado além da fragmentação capitalista tão em voga. O último chamamento do autor respalda-se no direcionamento de que é preciso trabalhar, enfocar, esmiuçar a idéia de que há limites para a relação da humanidade com a natureza.
Revista Ateliê Geográfico - UFG-IESA

VIOLETAS E PAVÕES


VIOLETAS E PAVÕES

Dalton Trevisan Record, 128 págs.



O epígono de si mesmo

O novo livro de Dalton Trevisan, um dos mais famosos contistas do País, Violetas e Pavões, deve ser lido como a obra de um epígono... do próprio Dalton Trevisan. Para quem nunca o leu, os contos surpreenderão pelo insólito da forma e do conteúdo. Uma linguagem trabalhada para ser ao mesmo tempo coloquial, concisa e chocante e um universo “normal na sua anormalidade” atingem como uma novidade, a de uma, digamos, brutalidade amena e tranquila, o leitor que nunca leu esse autor. Ali estão escatologias sexuais escandalizantes, hediondos crimes gratuitos, sossegadas mentalidades torpes, narradas neutra e assepticamente como fatos comuns e mesmo ordinários (em todos os sentidos do termo) de um cotidiano a rigor modorrento que, mesmo sendo bárbaro, nos é familiar. Mas, para quem já leu obras-primas como O Vampiro de Curitiba e outros grandes trabalhos de Dalton Trevisan, as violetas e pavões soarão como imitações e mesmo pastiches, por um escritor menor, de um escritor maior.


Carta Capital

A MULHER FOGE

A MULHER FOGE
David Grossman Companhia das Letras, 656 págs.
Sofrimento sem-fim
A guerra é um dos temas fundamentais da literatura do Ocidente. As narrativas homéricas e a Bíblia organizam-se, em grande parte, em torno deste fenômeno. Vitórias e derrotas são determinadas por vontades divinas, que conduzem a esse ou àquele resultado. A história judaica rompeu com essas noções desde que os judeus foram exilados de Jerusalém pelos exércitos de Tito, no ano 70 d.C. Desenvolveu-se, a partir daí, uma crença mística e messiânica segundo a qual o retorno a Jerusalém só poderia ocorrer por meio de uma intervenção divina.

A ideologia sionista surgiu na Europa, no século XIX, para romper com essa crença. Reintroduziu o povo judeu à história, à política – e à guerra. Theodor Herzl propunha o retorno dos judeus às terras dos ancestrais por meio de uma atuação humana, política e econômica. Seu projeto se consolidaria com a independência de Israel, em 1948. Mas, como se sabe, as coisas nunca se acalmaram realmente desde então.

É sobre o trauma da guerra que David Grossman escreve em A Mulher Foge, romance em flash-backs na idílica região da Galileia. Ele recria, em fragmentos, os reflexos destrutivos que a tensão militar constante provoca nos cidadãos. Um mundo dilacerado por sofrimentos é seu retrato pouco alentador do sonho sionista. Um detalhe trágico torna este livro ainda mais pungente. O autor começou a escrevê-lo enquanto o filho mais velho prestava o serviço militar e o mais novo, Uri, era morto em combate, na guerra do Líbano de 2006. “Eu tinha o desejo de que o livro o protegesse”, diz Grossman.

Carta Capital

"Predadores", de Pepetela


Como se estivéssemos diante de um retrato contundente e brutal dos últimos 30 anos na Angola. É com essa impressão que o leitor deve ficar assim que concluir o livro de Pepetela, "Predadores" (Língua Geral, 2008).


Capa do novo livro do angolano Pepetela no Brasil, "Predadores"
Tomando como ponto de partida o ano de 1974, um antes da Independência, o autor esquadrinha a sociedade angolana nesse período de transição com um certo tom de desencanto, mais do que a simples decepção ou o inconformismo sem efeito prático.

A experiência de Pepetela como guerrilheiro, como representante do Movimento Popular de Libertação da Angola (MPLA) e finalmente como vice-ministro da Educação, logo quando o seu país atingiu a independência, serviram de base para expor a seco o seu meio --de dentro, como uma personagem sendo guiada pela narração histórica que ora a faz recuar diante dos acontecimentos, boa parte deles conduzido pela esfera burocrática que começava a surgir, ora faz com que avance na direção de um combate militante.

Seu estilo simples e direto do relato faz lembrar a escola de Jorge Amado, homenageado de 2006. As temáticas são as mesmas, as trajetórias de seus personagens tocam pontos comuns [a paixão, o poder, o patriarcado, o dinheiro como força motriz e destruidora], e ambos seguem certa linha do engajamento formal na literatura.

Guardadas as proporções com o autor brasileiro, "Predadores" foi e é grande sucesso de vendas em Portugal, atingindo a cristalização de uma literatura de expressão africana.

Como as personagens de Amado, as figuras traçadas na ficção de Pepetela representam desdobramentos de uma sociedade heterogênea e em constante conflito de auto-aceitação; é o processo de independência figurada no cotidiano e na relação entre as classes.

No caso de "Predadores", o autor acompanha a trajetória de Vladimiro Caposso, o burguês que se formou a partir da independência de seu país. Suas andanças pelo sistema agrário de Angola, comércio, burguesia e, enfim, pela política de seu país, espelham a constituição de uma nova nação, construída a partir dos cacos resgatados pouco a pouco de seu solo mais fértil: a própria história.

Caposso, nascido José, de origem humilde e inicialmente avesso à política, foi capaz de modificar toda a sua vida, inventar um passado, e até um novo nome, para ter então acesso a um grau da escala social outrora inacessível. Microcosmo da recém independência de seu país, Pepetela e sua personagem Caposso (José) mostra os meios lícitos e ilícitos utilizados para conquistar o que se deseja, fora da vontade coletiva.

A representação da independência de um país, não mais como conquista e orgulho, mas como profundo desencanto.

Folha de São Paulo

A Ilusão e a Cura - Reis Taumaturgos - Marc Bloch


A Ilusão e a Cura - Reis Taumaturgos

por Tarcísio de Souza Gaspar

Será desnecessário apresentar Marc Bloch aos historiadores. As pessoas que têm por ofício remexer o passado e seus vestígios de vida humana bem sabem a presença de nosso autor. Sentem-na tão forte em sua formação cotidiana que parecem, já familiarizados, dispensar o auxílio e a recorrência da procura. O historiador dos Annales, assim como os mortos renascentes da história, marca a historiografia e sua posteridade, funda discípulos e princípios, conduz da maneira mais humilde e sincera a apologia da história ou o ofício de historiador. Nosso livro é uma obra sua e não a menos genial. Talvez, a mais famosa. De leitura clássica e indispensável. Seu conteúdo: obra de ciência, de artista metódico, fonte de um renovar de história onde ainda história inexistia. Os reis taumaturgos e seus escrofulosos_ símbolos da mais alta magia e da
crença; do poder e do sagrado, da ilusão e da cura.
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Tudo tem início num propósito novo. Trata-se de estudar, em pleno ambiente intelectual dos anos 20 do século passado, a história de um milagre. Refazer grande parte do percurso da Idade Média e da Época Moderna para compreender o rito de cura das escrófulas (adenite tuberculosa), efetuado pelos reis de Inglaterra e França através do toque de suas mãos, regiamente diferenciadas. Ou, para ser mais exato e explícito, “fazer história com aquilo que, até o presente, era apenas anedota”(p.43). E sua história revela-se profunda. Da anedota, extrai matéria interminável de compreensão da humanidade persistente naqueles tempos antigos. Mais do que extração, aprofunda-se em novo estudo de história política e mental.
No interior da obra, vários temas sobressaltam e se fazem presentes ao conjunto da história deste milagre. Dá-se especial atenção à importância do imaginário coletivo, do poder das crenças e atitudes mentais dos homens, assim como se volta à demarcação do campo de disputas políticas travadas no processo de ascensão das casas principescas européias; a relevância do sagrado para caracterizar o ambiente religioso e mágico destas épocas, oscilantes entre o catolicismo pio da Igreja, os projetos e intenções nem sempre espirituais do poder laico e as tradições e anseios da cultura popular. Adentra a história de um milagre régio e de sua apropriação do sagrado, disputa e delimitação de diferenças e penetrações entre o espiritual e o secular, rei e papa, sacerdote e leigo_ História de sagração e poder, fé e crença. Enfim, passado, mais uma vez, que se vê profundo porque profundos são os desejos de vida humana na história.



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A obra dividi-se em três livros. O primeiro, intitulado “as origens”, remonta aos primórdios das monarquias de França e Inglaterra. Servindo-se do famoso “mito das origens”, que tanto rodeia e seduz os historiadores, mesmo entre os mais astutos e conscientes, explicar-se-á o surgimento e a fundamentação permanente do ato de cura régia, no século XI, na França Capetíngia, e no século XII para os ingleses Plantagenet.
Mas, talvez, o indício mais significativo do primeiro tomo seja a caracterização do rito de cura em seus aspectos políticos e mentais: o desejo de cura dos escrofulosos, a imagem sagrada transposta ao rei através da consagração eclesiástica (principalmente com a unção), a delimitação da ambivalência atribuída pela cultura popular à certa salvação de sua saúde_ o sagrado enquanto sinônimo de “capaz de curar”_ e a longa tradição mágica presente em meio à gente comum.
O segundo livro, maior da obra, trata, primeiramente, do desenvolvimento do rito de cura régia durante a Baixa Idade Média, procurando “evocar o aspecto perceptível sob o qual esse poder corporificou-se aos olhos dos homens durante aquele período.”(p.91). O rei levava suas mãos às partes enfermas dos doentes e, logo após o toque, fazia o sinal da cruz. Eram essas, com pequenas variações, em suma, as ações básicas do rito.
Contudo, apesar de simples, não deixavam de possuir imensa popularidade. “Tanto os reis de França quanto os da Inglaterra pretendiam ter o poder de curar”, e junto deles, acrescenta Marc Bloch, “todas as classes estavam representadas na multidão sofredora que acorria ao rei”.(p.101). Ao que tudo indica, a crença no poder taumatúrgico dos reis passaria ilesa pelos tempos conturbados dos séculos XIV e XV. É que a multidão atribuía às personagens régias divindade demais para conformar-se com a opinião de que seus soberanos fossem apenas simples senhores temporais. E, nisso, não estavam sós: também a medicina da época concordava em legitimar a prática régia dentro de quadros válidos para a saúde humana. Contudo, ainda, como sempre, existem contraditores. E aí tem-se a presença marcante do movimento Gregoriano, a disputar,
primeiro com o Império e depois com o Regnum, as prerrogativas do sagrado. Por fim, ainda houve as tentativas de imitação dos reis ingleses e franceses por parte de alguns soberanos alhures.
Encontra-se também no mesmo livro o estudo de outra prática taumatúrgica. Só que, dessa vez, rito seguido apenas pelos soberanos Plantagenet. Trata-se das curas efetuadas pelos anéis medicinais benzidos pelos reis bretões, anéis que saravam da epilepsia e de distúrbios musculares. Em verdade, tínhamos, para todos estes atos mágicos e sagrados, o mesmo motivo: segundo Bloch, “o conceito de realeza sagrada e miraculosa (...), profundamente enraizado nas almas, permitiu que o rito do toque (assim como o dos anéis) sobrevivesse a todas as tempestades e a todos os assaltos”. (p.131).
Desta forma, vários temas perpassam a sedimentação do rito e as características essenciais com que o conceito de realeza sagrada e maravilhosa se mostrou. Dentre eles, destaca-se a dúbia condição assumida pela realeza diante da dignidade espiritual, quer dizer, “os reis sabiam muito bem que não eram de todo sacerdotes; mas eles também não se consideravam leigos; em torno deles, muitos de seus súditos partilhavam desse sentimento”.(p.149). Também, aspecto importante da santidade atribuída ao trono, a sagração real se fazia presente na devoção que lhe era dedicada. A unção régia, por seu lado, fornecia a razão desejada para demarcar a característica sagrada dos reis, que os situava, vez em quando, ao mesmo patamar dos sacerdotes de Roma. Vê-se, ao lado destas características, a própria definição e legitimidade do poder real: “Todo mundo sabia que para fazer um rei, e para fazê-lo taumaturgo, era necessário preencher duas condições(...) a ‘consagração’ e a ‘linhagem sagrada’”(p.169).
No desenrolar das práticas e discursos de legitimação, a monarquia condensa seus aparatos de símbolos e identidades. Em França, perpetuam-se as legendas do ciclo monárquico (Santa âmbula, as flores-de-lis e a auriflama) e as superstições que rodeavam a figura régia(o sinal de pele e a defesa inata contra os leões).
Porque, “nessa época, o sucesso do maravilhoso de ficção explica-se pela mentalidade supersticiosa do público a que se destinava.”(p.187). Enfim, tem-se todo um arcabouço de sofisticação e moldagem do exercício do poder, correspondente, nos dizeres de Bloch, “aos progressos materiais das dinastias ocidentais”.
Voltando à taumaturgia do toque das escrófulas, a evolução de signos atribuídos ao poder real é levada adiante pela aproximação, em França, da figura régia a S. Marcoul, santo curador deste mal que tanto afligia as almas. O que se mostra é a interpenetração de crenças populares que devotavam ao santo, assim como ao rei depois de sagrado, a capacidade sobrenatural. Além dos dois, somente aos “sétimos filhos” era concedido o dom taumatúrgico sobre os escrofulosos.
Contudo, apesar do avanço simbólico e material, sérios problemas surgiriam no século XVI para trajetória das casas reais européias. A Renascença e o Movimento Reformista compõem um novo tipo de pensamento humano e espiritual para os homens da Época Moderna. Mas, a crença maravilhosa da dádiva real ainda permaneceria viva até pelo menos o final do Antigo Regime. E nesse persistir, segundo Bloch, podemos entender melhor o desabrochar do absolutismo de Luís XIV na França e a profundidade do drama político inglês vivido no século XVII.
A Reforma havia complicado a vida política européia, e o rito do toque não escaparia às disputas que então se faziam entre os partidários da antiga fé e os novos seguidores da religião reformada. Primeiro abalo que se seguiria de outros. “Na verdade, a idéia do milagre régio estava relacionada a toda uma concepção do universo”, diz Marc Bloch. “Ora, não há dúvida de que, desde a Renascença e sobretudo no século XVIII, essa concepção tenha pouco a pouco perdido terreno.”(p.252).
As dinastias francesas e inglesas advindas após a Guerra dos Cem Anos e a Guerra das Duas Rosas passariam a tirar vantagem e também a sofrer os abalos de um lento, porém, progressivo, processo de secularização das consciências e das instituições políticas. As transmutações da história monárquica inglesa no século XVII imporiam vida curta ao rito miraculoso dos reis- médicos em território Saxão. A prática tem seu fim no início do século XVIII, já sob os Hannover.
O fim do rito francês demora ainda algum tempo. Tem-se, então, a incômoda passagem do pensamento ilustrado e da Revolução de 1789. Segundo o autor, “a decadência do milagre régio está intimamente ligada a esse esforço dos espíritos, pelos menos da elite, para eliminar da ordem do mundo o sobrenatural e o arbitrário e, ao mesmo tempo, conceber sob uma faceta unicamente racional as instituições políticas.”(p.252). O ocaso do rito em França se dá no século XIX sob reinado de Carlos X, situação onde a crença no milagre régio era ainda aceita apenas por parte do público arraigado às práticas antigas. Aqui se faz sentir toda a persuasão do céptico e irreligioso século XIX, onde o desencantamento do mundo redobrara a descrença nos corações dos homens.
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São várias as indicações que Jacques Le Goff nos oferece, em seu prefácio da obra de Marc Bloch, para melhor entendermos Reis taumaturgos. Num resumo de tópicos, Le Goff aponta os possíveis itens da vida intelectual e prática de Bloch que teriam influenciado a feitura da obra: as reminiscências da Grande Guerra, o ambiente da universidade de Estrasburgo, o contato mais próximo com os medievalistas alemães, e também a influência e ajuda do irmão médico. Por outro lado, no próprio interior da obra, destaca o grande objetivo do autor: “o que Marc Bloch quis foi fazer a história de um milagre e, simultaneamente, a da crença nesse milagre”; ou melhor, a ‘história total de um milagre’(p.16). Traça, assim como se tentou fazer nesta resenha, um resumo do livro e de seus aspectos propriamente discursivos. E, por fim, analisa a ‘instrumentária conceitual’ de nosso autor e os itens relevantes à historiografia contemporânea que ainda estariam presentes no conteúdo da obra.
Desses aspectos, alguns tem importância destacada. Hoje, compreende-se a enorme dívida que os historiadores contemporâneos contraíram ao fundador da Escola dos Annales. Pode-se aglomerar nesta dívida a relevância que se atribuiria posteriormente pelas ciências humanas à história em longa duração, ao método comparativo e à antropologia histórica_ todos métodos e conceitos utilizados e mesmo fundados por Marc Bloch neste seu livro. Por outro lado, e seguindo ainda a opinião de Jacques Le Goff, “mais que a história das mentalidades, o caminho que Marc Bloch nos oferece explicitamente é o de uma nova história política(...) é o apelo ao retorno da história política, mas uma história política renovada, uma antropologia política histórica de que os Reis Taumaturgos serão o primeiro e sempre jovem modelo”(p.47).
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Nos últimos anos, têm-se dado especial atenção, no âmbito da Historiografia da Europa Moderna, aos problemas e às especificidades do conceito de Absolutismo. O propósito deliberado de “resenhar” o livro abrenos espaço de revelar faceta mais concentrada, porém, não menos importante, do conteúdo intelectual desta obra de Marc Bloch. De fato, o que Reis Taumaturgos teria a nos dizer a respeito desse conceito tão controverso e debatido?
Ora, a mais óbvia e prática correlação que se pode estabelecer entre esta história de um milagre régio e o conceito de Absolutismo é a possibilidade de se imaginar historicamente a força e o poder que detiveram estes seres, considerados, ao mesmo tempo, humanos e sagrados. Por outro lado, no decorrer de seu livro, Marc Bloch destaca intencionalmente a estreita correspondência que houve entre o sucesso da crença no milagre e o progredir, lento e definido, dos avanços materiais e simbólicos das monarquias francesa e inglesa durante a Baixa Idade Média e a Época moderna.
Contudo, é possível ainda mais estender o alcance da obra. O que se entrevê em algumas passagens é a ligeira demarcação, por parte do autor, do que ele próprio denomina ser uma “história profunda”; quer dizer, história que interpreta a crença neste milagre como sinônimo de todo um arcabouço de pensamento e entendimento do mundo que orbitaria sob parâmetros completamente singulares e historicamente determinados. A secularização das consciências e atitudes, assim como a “racionalização” da vida, tão marcantes em nossa sociedade contemporânea, só poderá ser esboçada no decorrer de nossa história, assim como na de Bloch, quando chegamos, a pouco e pouco, cada vez mais perto de nosso tempo. E somente a vemos perfeitamente delineada após o século XVIII.
Para a Idade Média e para boa parte da Moderna, o que se vê em solo europeu é um mundo, ou uma forma de pensar o mundo, que pode ser definida como julgamento desvendado de um universo encantado e maravilhoso: fonte de todo o sagrado e sobrenatural.
O Absolutismo do Rei-Sol e a Monarquia de Direito Divino só poderiam ter razão de existir na atitude dos homens se, por meios possíveis, concedermos a eles a capacidade de aceitar como válidas práticas e crenças do “divino”. O que há de sagrado nos gestos e atitudes de Luís XIV para que se imagine o Todo-Poderoso conceito de amplitude do poder real? Nada haveria, por certo, se ao menos não fosse concedida a seus súditos a possibilidade do sagrado. E nisso, Marc Bloch nos ajuda a ver melhor a dificuldade de trabalho do historiador, estudioso que detém a incomensurável tarefa de escarafunchar alteridade com os mortos, tendo que, a cada vez em que olha pela janela de seu gabinete de estudos para o mundo de fora, saber lidar com a impressão aterrorizante e bela do contraste.
Le Goff vê em Marc Bloch homem “racionalista, herdeiro das luzes”, e assim justifica a necessidade do último livro de nosso autor (“interpretação crítica do milagre régio”), em que se procura entender ‘como se acreditou no milagre régio’. Para além das críticas ao, talvez, excessivo apego de Bloch, discípulo de Durkheim, às explicações racionais e científicas dos fenômenos sociais, o que fica já é o bastante. Se, às vezes, se podem encontrar dúbias colocações do autor a respeito da honestidade ou da sinceridade dos Reis e de seus fiéis seguidores no ato de cura _ o que o leva à inevitável conclusão de que tudo teria sido um “erro coletivo”_ o que se entrevê ao final é sempre a mesma seguridade abarcadora de todo um modo de compreensão do
mundo que, ao cabo, afetaria Reis e súditos. Mundo maravilhoso e sagrado, mas, não destituído de intenções políticas deliberadas ou, pelo contrário, muitas vezes indicador de desejos e atitudes humanas em todas as esferas da vida_ seja pela vivência econômica, social ou sensível.
Talvez, assim como assinalou nosso prefaciador, encontremos certa hesitação conceitual no vocabulário de Marc Bloch (particularmente, para mim, na recorrência com que aparecem na obra conceitos vagos de nacionalidade na Idade Média e Tempos Modernos). Mas, em suma, trata-se de obra fundamental no campo das idéias e concepções políticas que, a seu turno, submete um novo olhar sobre a história.
Por fim, por meio deste livro, podemos utilizar, sem medo de usufruir indevidamente, a erudição histórica de dez séculos e a reflexão sutil de um dos maiores historiadores do século XX.
Bibliografia:
BLOCH, Marc. In: Reis Taumaturgos_ o caráter sobrenatural do poder régio: França e Inglaterra. Prefácio de Jacques Le Goff. Tradução: Júlia Mainard. São Paulo, Cia das Letras. 2a Reimpressão, 1999.


Revista Cantareira - UFF

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Sabinadas


Sabinadas

Daniel Afonso da Silva


NO DIA 7 de novembro de 1837, a cidade da Bahia amanheceu sob governo de sabinos e diversos. Na primeira hora, rebeldes liderados por Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira e João Carneiro da Silva tomaram a Câmara Municipal de Salvador e declararam a província livre do mando imperial. A operação revolucionária entrara em execução na noite anterior com a ocupação do Forte de São Pedro. Após noite e madrugada tensas, fizeram soar, logo na alvorada, os sinos da casa da vereança. Os sonidos ecoavam pela cidade anunciando a nova. Comoviam uns, amedrontavam outros, e eram indiferentes a uns e outros tantos. Os primeiros corriam para a praça do Palácio. Os outros fugiam para o refúgio do governo deposto: Cachoeira. Os diversos uns e outros tantos continuavam a dormir ou levar a vida normalmente. Esse estado de exceção perdurou por mais de quatro meses. Durante esse período, os revolucionários lançaram mão de toda sorte e artimanha para efetivar seu poder. Ensaiaram alternativas. Construíram possibilidades. Geraram tendências. O conjunto dessas tendências é o objeto de Sabinos e diversos de Douglas Guimarães Leite; que amplia, com déficit de vinte anos, a senda aberta por Paulo César Souza de A Sabinada.

Em maio de 1987, Paulo César apresentava ao público sua análise sobre a referida revolta separatista baiana. Seu estudo foi logo tornado referencial indispensável à compreensão do ocorrido. Estudiosos das coisas de Bahia e Brasil oitocentistas consideraram-no obra definitiva. Isso gerou consenso acerca da impossibilidade de se ter algo novo a dizer sobre a revolta. A contribuição decisiva do estudo de Douglas Leite consiste na dessacralização desse consenso a partir do lembrete de que, em história, temas e assuntos são incomensuráveis como possibilidade analítica; porquanto, a revolta baiana de 1837-1838 merece novos exames e interpretações. Esses lembrete e recomendação conferem ao Sabinos e diversos o estatuto de abordagem inescapável aos navegantes do Oceano História política de Bahia e Brasil do oitocentos.

Cauteloso no trato de palavras e conceitos, Douglas procura efetuar interpretação política dos horizontes de expectativas e das formas de sociabilidade daqueles que assaltaram o poder na Bahia no "memorável 7 de novembro de 1837". De início, admite que isso foi uma "revolução" instrumentalizada por sabinos e diversos depositários de acúmulo político implementado desde a Independência baiana, 1822-1823. Observa que os rebeldes – ou melhor, revolucionários – envolvidos por arranjos políticos e identitários consideraram sua "revolução" a segunda e verdadeira Independência perseguida por outros meios. Essa continuidade por outros meios visava reparar fragilidades institucionais que impediam o Estado de suprimir aporias políticas que alimentavam desigualdades diversas. A pilhagem do poder foi a alternativa dos rebeldes para resolver essas questões. A manutenção desse poder, sob domínio rebelde, impunha a ampliação do espaço de atuação e consentimento revolucionários. Ou seja, exigia a aceitação da causa para além das cercanias de Salvador e a persuasão de pessoas capazes de legitimar econômica e ideologicamente o processo. essas condicionantes tiveram insucesso. Esse insucesso foi considerado razão importante do ocaso do movimento. De modo preciso, expressou o "limite da revolução". Acrescido a ele esteve a indiferença e o temor angustioso das incertezas da "revolução"; o rareamento e encarecimento de produtos de primeira necessidade, o que promovia e generalizava a fome; o "sabor do antigo" a causar desilusão; e amotinados de primeira hora – como Almeida Sande, Francisco Vicente Viana, Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva e João Gonçalves Cezimbra e outros – a debandar para Cachoeira à procura do abrigo do statu quo ante.

Além desses complicadores, Douglas indica outro, pouco observado, que é a divergência programática entre sabinos e não-sabinos; ou seja, sabinos e diversos. Esse é o ponto nodal de sua análise e de seu desacordo frontal com Paulo César.

No plano revolucionário apresentado pelos rebeldes no dia 7 de novembro, constava a seguinte determinação: "A província da Bahia fica inteira e perfeitamente desligada do governo denominado central do Rio de Janeiro". Quatro dias depois, dia 11, essa determinação sofreu reparo que propunha a necessidade de "considerar-se a Independência somente até a maioridade do Imperador o Sr. D. Pedro 2º".

Douglas sugere que esse reparo evidencia divergências no movimento. Segundo ele, os defensores do fixado no dia 7 eram liderados por Francisco Sabino e estavam imbuídos de republicanismo antimonarquista. Os outros seguiam João Carneiro da Silva e militavam pela Monarquia. Em suma, considera que o projeto dos "sabinos" era "republicanista, separatista e antimonarquista", e o dos "diversos", "federalista, unionista, nacional e imperialista".

Paulo César, acusa Douglas, não admite – ou, quiçá, não percebe – distinção nessas tendências, e por isso considera o movimento "contraditório", especialmente ao indagar "como conciliar lealdade a um monarca com fé republicana?" e propor o seu reconhecimento enquanto "república sui generis". Em contraponto, Douglas esclarece: "República é uma coisa, federação é outra". E sugere que os "sabinos" não intentaram conciliação com os "carneiros"; as pautas eram diferentes.

Seria cabotino tomar partido da polêmica de Douglas e Paulo César. Ela é mais que controvérsia analítico-interpretativa. Expressa a interlocução de duas gerações de estudos baianos mediada pela orientação de João José Reis. De todo modo, seria improcedente e penoso deixar de ponderar sobre o conjunto de algumas questões que essa interlocução, vista em perspectiva, suscita.

É inegável a contribuição de A Sabinada de Paulo César Souza. Da mesma forma, do Sabinos e diversos de Douglas Leite. Ambos desvelam aspectos expressivos da revolta e são significativos mesmo no que divergem.

A análise de Douglas procura se impor. Nalgumas vezes, consegue e desconjunta afirmações de Paulo César. Mas um e outro, ao que parece, padecem de mal comum: falta de história. Essa carência de história se deve a pelo menos dois fatores. O primeiro é a aparente ausência de respaldo analítico-interpretativo dos estudos baiano-brasileiros sobre o assunto. O segundo é o amplo desmerecimento atribuído às mudanças estruturais que inferiram nas histórias do Brasil, da Bahia e da revolta.

Paulo César e Douglas Leite não admitem de forma séria a revolta como expressão de tensões políticas, econômicas e sociais do ruidoso processo de formação e efetivação da modernidade, e modernização, que implodiu o Antigo Regime e o Antigo Sistema Colonial e orquestrou a emergência de Estados Nacionais no mundo ocidental. Esse processo, que cobriu o Ocidente de 1776 a 1848, produziu nova era. Nova forma de se pensar e praticar a política. Novos atores, espaços, condições, demandas, política. O Estado nacional brasileiro foi fruto disso. E a Bahia, enquanto porção expressiva do território e da sociedade brasílicos, atuou de forma decisiva.

Por esse pressuposto, o substantivo da revolta está para além da polêmica entorno da identificação de seu caráter "republicanista, separatista e antimonarquista" ou "federalista, unionista, nacional e imperialista". Reside na admissão de que essas concepções eram produto de campo semântico dinâmico que traduzia desejos e alternativas no interior do processo de mudança estrutural de esferas da existência que ultrapassava as fronteiras da cidade sitiada, da Província conturbada e da própria sociedade brasileira em construção. Eram reflexos centrífugos e centrípetos de acomodação e superação de crises forjadas por contradições e conflitos, revoltas e revoluções permanentes que modificavam, de forma drástica, a percepção objetiva da vida.

De forma específica e retrospectiva, o baiano, acometido pelo caráter replicante e desviante da identidade portuguesa durante o período colonial, foi se tornando brasílico ao longo do setecentos e com a implosão do mundo colonial foi instado a "ser brasileiro". Cada indivíduo, circunscrito a determinada esfera social e localização territorial na Bahia, respondeu de maneira própria a essa imposição. Com o fim do primeiro reinado e a instauração da regência em 1831, essa condição de brasileiro foi se afigurando inevitável.

Cipriano Barata, em escrito de 1831, ano terrível na Bahia, no Brasil e alhures, caracterizou com precisão essa situação ao julgar que "duas gerações há só diferente, virtude e vício; tudo mais é engano". "Virtude" era admitir a condição de cidadão brasileiro e concorrer, de forma incondicional, para a consolidação do Estado e da nação. "Vício" era reiterar práticas do antigo sistema lusitano que a manutenção da escravidão relutava em sepultar.

Em suma, o passado presente e o futuro passado estavam em substantiva negociação.

No "Plano e Fim Revolucionário" – documento encontrado na matula de Francisco Sabino quando preso no dia 22 de março de 1838, sete dias após o fim da revolta separatista baiana – constava a seguinte advertência: "Esta Província deve se por a salvo dos golpes do partido e facção aristocrática-portuguesa". Se essa premissa compunha o ideário dos revolucionários baianos de 1837, o que é quase indubitável, o elemento principal da revolta era contestar, aniquilar a estrutura de dominação do passado, o vício que se fazia presente na Bahia e obstruía a perpetuação da "virtude". A via pela qual isso iria se processar – fosse republicana, separatista, antimonarquista, federalista, unionista, nacional e imperialista – poderia até ser assunto expressivo. Mas não era o essencial. Observe-se que, quando o movimento se viu esgotado, o general Sérgio José Velloso, comandante em chefe das forças revolucionárias e responsável pela rendição do grupo, expressou isso com muita clareza ao informar que os rebeldes se entregavam para "evitar de uma vez o derramamento de sangue brasileiro". Ou seja, os rebeldes se consideravam brasileiros e virtuosos e desejavam a contemplação plena dessa sua condição que a recorrência do passado, leia-se o "partido e facção aristocrática-portuguesa", obstava concretizar.

Reconstituir a revolta baiana por um diapasão sedento de mais história, certamente, ajudará a preencher o vazio de História que acomete a sua explicação e a conferir maior inteligibilidade às histórias da Bahia e do Brasil do período.

Daniel Afonso da Silva é doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo. @ – daniel.afonso@usp.br

Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo

Comunhão com o homem comum



Comunhão com o homem comum

Fraya Frehse


O QUE poderia haver de comum entre a segunda edição revista e ampliada de um livro de sociologia da vida cotidiana lançado pela primeira vez em 2000 e relançado em 2008, e um CD embebido de acordes de viola caipira vindo a público no final de 2007? Seria o forte laço de amizade que une os seus dois autores, respectivamente, José de Souza Martins, sociólogo e professor do Departamento de Sociologia da USP, e Ivan Vilela, violeiro e professor do Departamento de Música da mesma Universidade? Outra opção: o interesse de ambos por decifrar o chamado "Brasil profundo" – no primeiro caso, em termos sociológicos; no segundo, musicalmente. Se as duas possibilidades certamente se aplicam, gostaria, aqui, de explorar uma terceira. O que esse livro e o CD compartilham também é a comunhão que cada um dos autores estabelece com o homem comum que somos todos, leitores ou não de livros como esse, apreciadores ou não de violas como a de Ivan Vilela, em nossa vida de todo dia, no Brasil deste início de século XXI.1

Basta ler as primeiras linhas do livro, basta ouvir os primeiros acordes do CD: o que, em cada um, nos toca para além do intelecto, da razão, é aquilo que sensibiliza, faz chorar e rir o homem simples que habita em nós. E isso, por mais que a vida cotidiana, cada vez mais constrangida pela cotidianidade que vivemos na cidade de São Paulo – e não só nela, porém ainda em outros locais do Brasil – nos dias de hoje, se interponha com vigor crescente entre o que somos e o que pensamos ser. O que o livro e o CD propõem, cada um a seu modo, são pontes, criativas pontes para esse fosso entre nós e nós. Advém daí que, ao ler e ao ouvir, nos reencontramos com o que de nós, na rotina, quase nem sabemos mais existir. As pontes conduzem ao homem comum.

É, de fato, ele o grande protagonista do livro e do CD. Ivan Vilela o puxa para o palco já por meio do instrumento que toca: a secular viola caipira. ela já fez chorar não só o violeiro, não só sua amada, não só a população do campo, mas inclusive – e, brevemente, um depoimento pessoal – o meu avô imigrante, urbanita alemão pobre que chegou ao Brasil em 1924 e que sempre ficava com os olhos marejados, ao ouvir um dos muitos LP de Inezita Barroso que buscou colecionar, morador de São Paulo, ao longo de toda a sua vida.

Uma vez no palco, o homem simples dança a "valsinha" de Vinícius de Morais e Chico Buarque tal qual reinventada por Ivan Vilela. Ele vira também "Eleanor Rigby", vira "Moreninha" e/ou "Pescador", títulos de outras das várias músicas do CD. Embalado pelo "Ponteio" de Edu Lobo e de Capinam imaginado por Ivan, o homem simples "chora" com a viola que ninguém como ele, às vezes travestido de Ivan-George Harrison, sabe fazer chorar: "While my guitar gently weeps"... Mas o homem simples também se emociona ao discernir, numa árvore imaginária ou não, um "Passarim". Recorda-se, assim, de antigas "carreiras" e da tristeza sem fim de uma "viola quebrada".

Diante da emoção que emana dessas "Dez cordas" que unem, numa só unidade, o diverso do popular e do erudito, do tradicional e do moderno, do rural e do urbano, eis que nós, outros homens comuns tão pobres de tempo, de repente achamos tempo para nos deixar tocar. Tempo para, pela mediação dessas toadas, nos reconciliar com aquele que, em meio à vida cotidianizada dos atuais tempos de capitalismo globalizado, nem bem mais bem sabemos que também somos.

De fato, nesse CD e nesse livro o homem comum merece toda a claridade do "Luzeiro", outro título de Almir Sater que as cordas de Ivan reteceram. Luzeiro para o qual José de Souza Martins, em A sociabilidade do homem simples, abre espaço através de sua já conhecida e notável imaginação sociológica. Imaginação sociológica notável por vários aspectos, mas também pela maneira como consegue conjugar competência teórica e metodológica e sensibilidade etnográfica para trazer para o centro da reflexão sociológica justamente o homem comum.

Tal perspectiva não é nem um pouco comum na sociologia. Se já não o era há quase dez anos, quando o livro foi lançado pela primeira vez, infelizmente ainda o é pouco neste início de século XXI. Difícil, a equação entre teoria e empiria, sobretudo num país como o nosso. Diante da complexidade que a "sociabilidade do homem simples" brasileiro oferece o olhar sociológico, é grande a tentação de deixá-lo "para lá", na (vã) tentativa de resguardar, das vicissitudes sociais e culturais brasileiras, a coerência das grandes teorias européias ou norte-americanas.

O quanto do projeto histórico da sociologia assim se perde fica obliterado para o homem comum brasileiro que o sociólogo ou a socióloga não deixa, também ele ou ela, de ser, ao produzir sociologia no Brasil. Em seu livro, Martins assume precisamente essa complexidade como pretexto e desafio sociológico. O que implica inevitavelmente assumir como objeto de ponderação – e crítica – a própria sociologia.

Se em Ivan Vilela o homem comum dança, chora, relembra, se emociona, ele é exatamente aquele que passeia pelas páginas de A sociabilidade do homem simples. Só que aqui esse é contemplado pelas relações sociais que o envolvem e por meio das quais ele se constitui como tal. É enfocado por meio do embate dialético que o seu imaginário trava dia a dia com a sua imaginação. É observado, enfim, por meio da história que ele faz na história, e da cultura da qual ele é produto e produtor. É o que assegura que o passeio desse homem comum pelo livro seja movimentado, socialmente. Com freqüência ele se encontra em companhia de terceiros: sua família, seus vizinhos, seus estranhos da vigília e do sonho, seus Outros de casa e da rua, seus companheiros de ônibus e de estrada. Isso quando ele não é acompanhado por grupos mais amplos – de índios Parkatejê, de movimentos sociais como o dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – e também por grupos mais abstratos, como o movimento literário modernista no Brasil e na América Latina.

Como cercar analiticamente toda essa pletora de gente em seu cotidiano e manter-se próximo dela em meio à inevitabilidade de teorização, crucial para uma compreensão propriamente sociológica da "sociabilidade do homem simples"? Levando, como faz Martins, absolutamente a sério o aparentemente insignificante, o irrelevante da vida de todo dia, aquilo que à primeira vista é totalmente incoerente – e, por isso mesmo, tão incômodo ao olhar sociológico mais desavisado.

Por que o enfoque? Porque Martins entende que "a explicação do todo concreto" fica "incompleta e pobre se não passa pela mediação do insignificante" (p.11). Entender a sociedade e a história depende de se entender como ambas se expressam – e são feitas – na vida cotidiana. Ou, como diz Martins: "É na vida cotidiana que a História se desvenda ou se oculta" (p.12). Vem daí que o homem comum que vagueia pelo livro conta também com a companhia dos olhares sempre atentos dos interlocutores teóricos privilegiados do autor: as obras de Florestan Fernandes e de seus alunos, a obra de Antonio Candido e de seus alunos, a obra de Karl Marx e, em particular, a de Henri Lefebvre. Em cada um desses pensadores, de modos diversos, a busca por uma compreensão sociológica enraizada – enraizada não apenas empírica, mas historicamente.


Por tudo isso, o passeio que o livro propõe se inicia numa travessia liminar como aquelas, profundamente reveladoras, de Guimarães Rosa. Travessia essa que não deixa de ser uma vereda estreita como aquela mesma onde se apeia, para tocar, o violeiro de Ivan vilela. O leitor é convidado a conhecer primeiramente essa travessia, sempre inconclusa, que marca o nosso modo brasileiro – e latino-americano – de ser e de viver a modernidade, a fim de poder, num segundo momento, compreender por que é tamanha a riqueza interpretativa que especificamente o senso comum, modalidade de conhecimento privilegiada do homem simples, oferece ao pensamento sociológico. Foi essa a estratégia narrativa que Martins escolheu para levar o leitor a descobrir sociologicamente o homem comum que mora dentro dele mesmo.

Já próximo desse homem, o leitor pode, nos capítulos seguintes, tornar-se seu companheiro pelas veredas. Assim pode compreender melhor algumas searas que são mediações pelas quais esse homem se achega e afasta de si dia a dia, no cotidiano cada vez mais tomado pela cotidianidade em que nos movemos todos, no Brasil da atualidade. Tomamos contato com os processos sociais e históricos mais amplos que os nossos sonhos ocultam e revelam; compreendemos por que vida cotidiana e vida privada não são a mesma coisa; por que sociologicamente o nosso tempo é prenhe de temporalidades históricas; por que, enfim, levar em consideração tudo isso carrega em si tantas potencialidades para uma compreensão enraizada, "não alienada", daquilo que somos, cada um de nós, no Brasil de hoje.

Na segunda parte do livro, é o fazer sociológico do próprio Martins que se torna objeto de enraizamento social e histórico. As duas entrevistas concedidas pelo autor trazem para o primeiro plano justamente o homem comum que também Martins é. Refiro-me ao filho do subúrbio paulistano, filho de imigrantes ibéricos pobres, que fez da sociologia muito mais do que um ofício. Fez dela um modo de estar no mundo, um modo privilegiado de vivê-lo e de pensá-lo. Um modo de, pela mediação da sociologia, fazer história e, assim, fazer-se humano na história.

Marcados por tais características, o livro e o CD abrigam uma intimidade com o homem comum que estimula – e assim finalizo esta reflexão – uma pergunta marota: Como é possível tanta proximidade com os rincões do mundo cotidiano de cada um e de todos nós, sendo Martins e Ivan também intelectuais? Talvez porque, acima de tudo, Martins e Ivan tenham conseguido, cada um à sua maneira, não apenas reencontrar, mas apossar-se efetivamente – em casa, na rua e na academia, em seus textos e músicas – do homem comum que eles também são.


Nota

1 Desenvolvi pela primeira vez este argumento por ocasião de um convite que me foi feito, de apresentar publicamente o livro e o CD durante o evento de lançamento conjunto de ambos, na paulistana Livraria da Vila, em 3 de março de 2008.


Fraya Frehse é professora doutora do Departamento de Sociologia da USP e pesquisadora associada do Núcleo de Antropologia Urbana da mesma Universidade. @ – fraya@usp.br

Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo

Liberalismo - entre civilização e barbárie


A democracia e seus inimigos!

Francisco José Soares Teixeira


A missão civilizadora do colonialismo

NO PREFÁCIO à primeira edição alemã de O capital, após comentar as dificuldades que poderia apresentar a leitura do primeiro capítulo, Marx acrescenta que pressupõe leitores desejosos de aprender algo novo e, portanto, dispostos a pensar por conta própria. Domenico Losurdo enquadra-se nessa categoria. É um marxista que pensa com os fundadores do materialismo histórico, não para repetir simplesmente o que aprendeu com eles, mas, sim, na condição de discípulo que não se deixa anular diante da autoridade dos seus mestres. Em Liberalismo. Entre civilização e barbárie, caminha com eles, obviamente, mas com a autonomia de quem sabe abrir novos caminhos, corrigir o que lhe parece necessário e, assim, afirmar-se como leitor digno de Marx e de Engels.

Por isso, não teme em afirmar que o jovem Marx foi precipitado ao definir "os Estados Unidos como 'o país da mais acabada emancipação política', ou ainda como 'o mais perfeito exemplo de Estado Moderno', que assegura o domínio da burguesia sem excluir a priori nenhuma classe social do gozo dos direitos políticos".

Para o autor de Liberalismo..., Marx fez vista grossa à discriminação censitária racial praticada pelos ianques. Mais ainda o fez Engels ao celebrar com entusiasmo a anexação da Califórnia pelos Estados Unidos. Não se deu conta, diz Losurdo, de que tal exaltação fazia eco à ideologia do manifest destiny. Em nome do advento do socialismo, o autor da Dialética da natureza não se continha de esperanças. Sem medir os adjetivos, aplaudiu a derrota dos "indolentes mexicanos", condição necessária, segundo assim entendia, para a transformação daquele país numa sociedade civilizada, governada, portanto, por relações capitalistas de produção.

Para não deixar seu leitor com dúvidas, Losurdo convida-o para acompanhálo na leitura que faz de Engels. Deixa-o expressar, em alto bom som, que, "graças ao 'valor dos voluntários americanos', 'a esplêndida Califórnia foi arrebatada aos indolentes mexicanos, que não sabiam que fazer dela'; aproveitando-se das novas e gigantescas conquistas, 'os enérgicos ianques' deram novo impulso à produção e circulação de riquezas, ao 'comércio', à difusão da 'civilização'".

Seriam os fundadores do materialismo histórico indiferentes às dores e aos sofrimentos dos "povos bárbaros" (índios, negros, hindus etc.), que ainda viviam à margem do mundo civilizado? À primeira vista, tudo indica que sim. Prova disso oferece Losurdo ao comentar a veemência com que Marx celebra a invasão da Índia pelos ingleses. Sem nenhum constrangimento moral, o autor de O capital afirma que

"a Índia não podia fugir ao destino (fate) e ser conquistada"; e por outro lado, a humanidade pode cumprir o seu destino (destiny) sem uma profunda revolução nas relações sociais da Ásia? e a Inglaterra conquistadora que leva a efeito na Índia "a mais grandiosa e, para dizer a verdade, a única revolução social que a Ásia jamais conheceu".
Marx certamente não é um cínico empedernido, alheio à miséria dos povos explorados. Losurdo sabe disso muito bem, quando lhe concede a palavra para dele ouvir que o "capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés". Mas nem por isso o jovem Marx se deixou tomar por sentimentos piedosos. Convicto de que a humanidade não poderia "cumprir a sua missão sem uma verdadeira revolução do estado social na Ásia", vale-se de Goethe para dizer que não lamentava "os estragos, pois os frutos são prazerosos". Leitor de Hegel, aprendeu que a história universal não é uma aventura romântica, "viagens de cavaleiros errantes". Essa idéia aparece com toda força no Manifesto Comunista. Seus autores viam o mundo civilizado como "o instrumento inconsciente da História", ao qual cabia a tarefa de realizar o trabalho sujo: varrer da terra todas "as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas".

A história encarregou-se de mostrar que Marx e Engels estavam errados. Losurdo diz por quê: abraçaram uma concepção fatalista da evolução social, que traz em seu seio um eco vibrante da filosofia liberal burguesa. Por essa razão, não teme afirmar que eles foram contaminados pelo preconceito iluminista, o qual via a tradição como um mundo povoado de mitos, fantasias e feitiçaria, que mantinha o homem num estado de menoridade indigno de criaturas dotadas de razão. Como os Iluministas, os autores do Manifesto Comunista defendiam a tese de que a tradição nada tem a ensinar, devendo, portanto, ser exorcizada e sepultada sob os escombros do desenvolvimento das forças produtivas. Estariam, assim, justificados todos os crimes e atrocidades, cometidos em nome da civilização? É-se tentado a concordar. Para Losurdo, contudo, isso seria o mesmo que dar uma carta branca às metrópoles coloniais, outorgando-lhes direito de invadir e saquear a periferia capitalista.

Tocqueville, autor da Democracia na América, narra que os colonizadores da Nova Inglaterra julgavam que as terras daquele país estavam reservadas para eles, os quais, em nome de Deus, tomaram-nas dos indígenas – essa pobre e ignorante gente que não sabia o que fazer com elas. Por isso, aquela imensidão de terras, tão bem preparadas para o desenvolvimento do comércio e da indústria, não poderia permanecer nas mãos desse povo bárbaro. Afinal, quis Deus revelar ao branco, não ao índio, os segredos da agricultura.

De certa forma, o pensamento de Marx estaria muito próximo do de Tocqueville, segundo Losurdo, que ressalta o fato de que Marx, quando

define os EUA como o "país da emancipação política realizada", ou então como "exemplo mais perfeito de estado moderno", que assegura o domínio da burguesia sem excluir a priori nenhuma classe social do gozo dos diretos políticos", é claro que procede a esta definição sem ter em conta a escravidão dos negros ou a sorte dos índios; não parece dar-se conta o fato de que a discriminação censitária passa nesse país através da discriminação racial. Nesse sentido, Marx pouco se distingue de Tocqueville. E é nos ambientes liberais do seu tempo que também faz pensar o alto reconhecimento do Manifesto Comunista pela burguesia da metrópole capitalista que "arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para a civilização" e que, por meio das suas conquistas coloniais, cumpre a tarefa, aliás a "missão (mission), de criar o mercado mundial [...]"
Não só os Estados Unidos e a Inglaterra são vistos como "instrumentos inconscientes da História". Losurdo constata, com base num artigo escrito em 1849, que traz o sugestivo título Paneslavismo democrático [Der demokratische Panslawismus], que Engels atribui à Alemanha função semelhante. Comenta que

o papel dos EUA desempenhado no continente americano, Engels parece pretender atribuí-lo à Aemanha na Europa central, enquanto o lugar do México parece ser ocupado pelas "naçõezinhas" (Nationchent) eslavas "que nunca tiveram história" e que só podem alcançar a "civilização" graças a um jugo estrangeiro.
As lições que Losurdo tira dessa concepção de Marx e Engels são ricas de ensinamentos políticos. A idéia da missão civilizadora de uma raça superior contaminou os partidos da social-democracia. Bernstein, por exemplo, em nome do progresso, abraça o social-darwinismo e o leva ao extremo, para defender a tese de que

"todas as raças fortes, todos os sistemas econômicos sólidos, têm a tendência para se alargarem e expandirem com a sua civilização. Este impulso expansionista tem sido em todos os tempos o mais poderoso fator de progresso". "Raças fortes" aqui é sinônimo de raças civilizadas, enquanto na vertente oposta vemos opor-se uma inútil e retrógrada resistência por parte dos povos não civilizados, e até – note-se bem – "incapazes de se civilizarem": dado que "se insurgem contra a civilização": têm de ser combatidos também pelo movimento operário.
Losurdo poderia ter avançado um pouco mais, para constatar que a social-democracia internacional, com honrosas exceções, justificou e facilitou a carnificina de dez milhões de seres humanos durante a Primeira Guerra Mundial, em nome de pretensas razões de defesa nacional. Os governos social-democratas, ou com a participação da social-democracia, organizaram ou defenderam guerras na Indochina, na Malásia, na Indonésia e na Argélia. Foram mais longe ainda. Defenderam práticas de torturas e limitaram as liberdades democráticas na Índia, na Indonésia, no Egito, no Iraque e em Cingapura. Protegeram o regime do apartheid na África do Sul. Participaram da guerra fria, além de se tornarem cúmplices das políticas imperialistas. Em nome do grande capital, apoiaram e organizaram as políticas de austeridade monetárias e fiscais, que tiveram como conseqüência o desmantelamento do Estado social, que ajudaram a construir.



Universalismo e recolonização

Bernstein não está muito distante de John stuart Mill, para quem,

O despotismo é uma forma legitima de governo quando se lida com bárbaros; desde que o fim seja o seu progresso e os meios sejam justificados pela sua real consecução. A liberdade, como princípio, não é aplicável em nenhuma situação que anteceda o momento em que os homens se tenham tornado capazes de melhorar através da livre discussão entre iguais. Até então, não haverá nada para eles, salvo a obediência absoluta a um Akbar ou a um Carlos Magno se tiverem a sorte de encontrá-los.
Menos ainda está do amigo da Sociedade Aberta, Karl Popper. Esse democrata convicto, referindo-se às ex-colônias, lamenta: "'libertamos estes estados depressa demais e de maneira demasiada simplista'; é como 'deixar um orfanato entregue a ele mesmo'".

Essas duas últimas citações, extraídas do livro de Losurdo, resumem a tese central desse autor: a democracia não é incompatível com a exclusão social, política e com a segregação racial. Melhor deixar que ele mesmo confirme esta leitura. Em seu diálogo com Tocqueville, conclui que "um país e um regime político são definidos democráticos independentemente da sorte dos excluídos, por mais amplo que possa ser o número e mais cruel a sua sorte".

Foi assim no começo, quando a democracia começava a engatinhar; mais tarde, quando o voto se tornou um direito universal e, finalmente, quando se transformou num regime um pouco mais justo, com garantias de alguns direitos sociais e econômicos. Não sem razão, Losurdo abre seu livro com os olhos voltados para o Oriente Médio, em particular para o Iraque, quando o bloqueio àquele país, imposto pelos Estados Unidos e seus aliados, implicou a desnutrição

"de 23% da população. A taxa de mortalidade infantil neste período duplicou: agora ronda 70 mil"; já está em causa a "sobrevivência de mais de um milhão de pessoas entre velhos, mulheres e crianças". "São tremendos os sofrimentos" impostos pelo bloqueio, mas "as atribulações do povo iraquiano não conseguem captar a compaixão internacional. E menos que nunca a da imprensa norte-americana que troa: "Se as Nações Unidas não quiserem impor uma zona proibida aos tanques (iraquianos), a América deverá impô-la unilateralmente".
Algumas páginas mais adiante, Losurdo demonstra que o imperialismo nunca saiu de cena. Desde a era colonial aos dias de hoje,

este sistema de relações internacionais celebra seus maiores triunfos mesmo no plano ideológico, rodeado que está por uma aura que consagra o seu caráter benéfico para o presente, o passado e o futuro. "Finalmente o colonialismo está de volta. Já era hora!", anunciou triunfalmente, o The New York Times, dando palavra ao historiador Paul Johnson.
Valendo-se de um arsenal de informações sobre os acontecimentos históricos que se desenrolam no presente, a crítica de Losurdo desnuda os amigos da Sociedade Aberta, para quem

os povos do Terceiro Mundo continuam a ser considerados meio crianças meio diabos, é justo que sejam severamente punidos pelos que são os únicos realmente capazes de entendimento e vontade, pelos adultos titulares do patria potestas, os países e as classes dirigentes do civilizado mundo capitalista.
Se, para Marx, "o capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés", o colonialismo volta com mais sede de sangue do que nunca. Sua voracidade para saquear a "gentinha" pobre e ignorante da periferia capitalista, mitigada no breve período em que a Revolução de Outubro manteve sua bandeira hasteada, não tem mais limites. o processo de emancipação política, que freou o avanço do domínio colonial e o seu cortejo de intolerância racial e étnica, inverte-se com a queda o

muro de Berlin, enfraquece-se e paralisa-se. Este é o balanço histórico realizado por Losurdo:

se os povos coloniais conquistaram os direitos políticos mediante a construção do Estado nacional independente (do qual eram considerados indignos e para o qual eram considerados incapazes), o esgotamento da soberania nacional, no Terceiro Mundo e nas zonas periféricas, é o modo concreto pelo qual se desenvolve hoje o processo de desemancipação, isto é, de liquidação dos direitos políticos que aqueles povos já haviam conquistado.
A conclusão que daí tira é de todos conhecida:

a maior parte da humanidade está prestes a ser excluída da "comunidade internacional", ou seja, para utilizar a linguagem e Popper, do círculo dos "Estados civilizados", como na época de ouro do colonialismo [...] Já emerge com clareza os contornos da "Nova Ordem Internacional": de um lado, aqueles a quem competem o direito e a obrigação de lançarem "operações de política internacional", de outro, os rogue States, os Estados-fora-da-lei; mais exatamente, os não-Estados, cujo comportamento ilegal deve ser abatido a qualquer custo e por qualquer meio. Neste tipo de estado mundial aqui evocado compete ao Ocidente o monopólio da violência legítima, tornando explícito o processo de desemancipação que se consuma em prejuízo dos excluídos.






Crítica da missão civilizadora

Se vivos fossem Marx e Engels, certamente repensariam a idéia da missão civilizadora do capital. Coisa, aliás, que começaram a fazer em seus escritos de maturidade. Losurdo tem consciência disto, quando reconhece que se deve a Engels, "o princípio segundo o qual o proletariado vitorioso não pode impor nenhuma felicidade a nenhum povo estrangeiro sem com isto minar a sua própria vitória".

Embora reconheça que não faltam aos dois autores ambigüidades e oscilações, Losurdo, mais uma vez, repara que o Marx mais maduro rejeita

como "stirnerianismo proudhonianizado" a tese segundo a qual "toda nacionalidade, e as nações enquanto tais", seriam [...] preconceitos caducos [...]. A polêmica é tão áspera que Marx taxa como "cinismo de cretino" a posição de Proudhon, que se exprime em termos irônicos e depreciativos à aspiração da Polônia a sacudir o jugo do Império Russo para se constituir em Estado nacional.
Ainda que faça poucas referências ao Marx de O capital, Losurdo sabe que, nessa obra, nem de longe, vibra qualquer eco da idéia da missão civilizadora do Ocidente. Nela não existe nenhum vestígio de uma filosofia da história, a despeito das acusações que lhe são feitas pelos amigos da Sociedade Aberta da vida.

Mas é Lenin a quem Losurdo credita a liquidação da idéia da missão civilizadora da raça branca [...], ao mesmo tempo, da visão unilinear do processo histórico própria da filosofia burguesa da história, que assenta no pressuposto da nítida distinção entre a área civilizada e a área da barbárie e do atraso por outro.
Mais claramente: "já em Marx e Engels a visão unilinear do processo histórico começa a cair em crise pela atenção prestada à questão nacional. Mas esta só se torna central em Lenin".

Para saber as razões por que Losurdo credita a Lenin e não a Marx e Engels a centralidade dessa questão, o leitor está convidado a descobri-las por conta própria. Adiante-se apenas que o revolucionário russo sofreu na pele o cerco imperialista contra a Revolução de Outubro. Grande parte do seu país, aos olhos preconceituosos do Ocidente, ainda estava imerso nas trevas da "desrazão". As razões de tudo isso estão escancaradas nas páginas de Liberalismo. Entre civilização e barbárie. Venha conhecê-las!


Francisco José Soares Teixeira é professor de Economia Política da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e autor, entre outras obras, de Trabalho e valor: contribuição para a crítica da razão econômica (2004); em co-autoria: Marx no século XXI (Cortez, no prelo). @ – acopyara@uol.com.br

Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo

terça-feira, 13 de outubro de 2009

ACUMULAÇÃO LITERÁRIA E NAÇÃO PERIFÉRICA


O ensaio que se segue é o último capítulo do novo livro de Roberto Schwarz, "Um Mestre na Periferia do Capitalismo - Machado de Assis", a sair em agosto pela editora Duas Cidades. A obra finaliza um trabalho sobre Machado de Assis que Schwarz iniciou no começo da década de 60 e que já havia sido parcialmente exposto em seu livro clássico "Ao Vencedor as Batatas" (Duas Cidades, 1977).

Roberto Schwarz

"(...) o aparecimento do 'Brás Cubas' modificou a ordem estabelecida: as posições de José de Alencar, de Manuel Antônio de Almeida, de Taunay, de Macedo - até então os grandes nomes da nossa ficção - tiveram que ser sensivelmente alteradas."
Lúcia Miguel-Pereira, "Prosa de Ficção"


"Se voltarmos porém as vistas para Machado de Assis, veremos que esse mestre admirável se embebeu meticulosamente da obra dos predecessores. A sua linha evolutiva mostra o escritor altamente consciente, que compreendeu o que havia de certo, de definitivo, na orientação de Macedo para a descrição de costumes, no realismo sadio e colorido de Manuel Antônio, na vocação analítica de José de Alencar. Ele pressupõe a existência dos predecessores, e esta é uma das razões da sua grandeza: numa literatura em que, a cada geração, os melhores recomeçam 'da capo' e só os medíocres continuam o passado, ele aplicou o seu gênio em assimilar, aprofundar, fecundar o legado positivo das experiências anteriores. Este é o segredo da sua independência em relação aos contemporâneos europeus, do seu alheamento às modas literárias de Portugal e França. Esta, a razão de não terem muitos críticos sabido onde classificá-lo."
Antonio Candido, "Formação da Literatura Brasileira"



A descontinuidade entre as "Memórias Póstumas" e a literatura apagada da primeira fase machadiana é irrecusável, sob pena de desconhecermos o fato qualitativo, afinal de contas a razão de ser da crítica. Mas há também a continuidade rigorosa, aliás mais difícil de estabelecer. Os dois aspectos foram assinalados ainda em vida do Autor, e desde então se costumam comentar, cada qual por seu lado, no âmbito ilusório da biografia: a crise dos 40 anos, a doença da vista, o encontro com a morte ou o estalo do gênio explicam a ruptura; ao passo que o amadurecimento pessoal e o esforço constante dão conta do progresso ininterrupto. Levada ao terreno objetivo, da comparação dos romances, a questão muda de figura e os dois pontos de vista deixam de se excluir. Em lugar do percurso de um indivíduo, em particular a sua evolução psicológica ou doutrinária, observamos as alterações mediante as quais uma obra de primeira linha surgiu de um conjunto de narrativas médias e provincianas. Em que termos conceber a diferença? Para situar o interesse da pergunta, digamos que ela manda refletir sobre os aprofundamentos de forma, conteúdo e perspectiva que se mostraram capazes de corrigir a irrelevância de uma parte de nossa cultura, ou de lhe vencer o acanhamento histórico. Tudo estará em especificar o que muda e o que fica, sempre em função de um impasse literário anteriormente constituído e a superar, o qual subjaz à transformação e lhe empresta pertinência e verdade.
A novidade dos romances da segunda fase está no seu narrador. A vários críticos o humor inglês e a inspiração literária sem fronteiras pareceram sugerir para mal ou para bem, um espaço alheio a balizas nacionais. Nos capítulos anteriores argumentamos em sentido contrário, tratando de salientar o funcionamento realista do universalismo, impregnado de particularidade e atualidade pela refração na estrutura de classes própria ao país. Analogamente, o parentesco entre o autor tão metafísico das "Memórias" e o mundo estreito e edificante dos romances iniciais não salta à vista, mas se pode demonstrar.
Vimos que o procedimento literário de Brás Cubas - a sua volubilidade - consiste em desdizer e descumprir a todo instante as regras que ele próprio acaba de estipular. Ora, com a velocidade a menos, a mesma conduta já figurava nos romances do primeiro período, "sob forma de assunto". De "Ressurreição" (1872) a "Iaiá Garcia" (1878), as narrativas têm como objeto o estrago causado pela vontade imprevisível e caprichosa de um proprietário. A partir de "A Mão e a Luva" (1874), a travação de classe do tema vem à frente e o passa a determinar. A questão está encarada do ângulo da moça de muitos méritos, mas pobre e dependente, a quem as decisões arbitrárias, de um filho-família ou de uma viúva rica, aparentemente liberais, reservam seja humilhações e desgraças, seja o possível prêmio de uma cooptação. Os aspectos morais esmiuçados pela análise são sobretudo dois, rigorosamente complementares, um em cada pólo da relação: a) visto o desequilíbrio de meios entre o proprietário e os seus protegidos, qual a margem de manobra dos segundos, caso não aceitem cometer indignidades ou ser destratados, mas queiram, ainda assim, ter acesso aos bens da vida contemporânea? e b) como não será ignóbil a nossa gente de bem, além de "louca", se a promiscuidade entre desejo escuso e autoridade social, impeditiva para qualquer espécie de objetividade, decorre estruturalmente da falta de direito dos demais? A perspectiva dos romances é civilizatória, pois cuida de tornar essas relações menos bárbaras para os dependentes, e menos estéreis para os abastados, isso mediante a compreensão esclarecida do interesse dos dois campos, ambos desorientados pelos efeitos da arbitrariedade, o verdadeiro ponto a corrigir (1).
No conjunto, os romances da primeira fase exploram os dilemas do homem livre e pobre numa sociedade escravista, onde os bens têm forma mercantil, os senhores aspiram à civilização contemporânea, a ideologia é romântico-liberal, mas o mercado de trabalho não passa ainda de uma hipótese no horizonte. Se não há como escapar às relações de dependência e favor, ainda conhecendo o seu anacronismo histórico, existiria algum modo de lhes evitar o efeito humilhante e destrutivo? Conduzidos pela autocrítica muito consequente, os progressos de um livro a outro são notáveis. O período culmina em "Iaiá Garcia". Aqui o sistema do liberal-clientelismo está exposto com amplitude, expresso na sua terminologia própria, sustentado por uma galeria de personagens penitentes e diferenciadas, organizado pelos conflitos práticos e morais que lhe são específicos, e ajudado, enfim, por uma dramaturgia inventada sob medida. O ajustamento à peculiaridade nacional resulta de um vasto trabalho de absorção da empiria, e, não menos importante, do deslocamento e cancelamento dos esquemas românticos, folhetinescos ou liberais, percebidos como ilusão. Nessa altura, a quantidade das observações sociais e psicológicas, das reflexões críticas e das soluções formais encontradas já representa uma acumulação realista muito respeitável - neutralizada, apesar de tudo, pelo enquadramento conformista.
Na sua versão mais complexa, carregada de ressonância moral, ideológica e estética, o impasse fixado em "Iaiá Garcia" se prende à exigência de dignidade dos dependentes. Esses já não querem dever favores a ninguém, pois "a sua taça de gratidão estava cheia" (2). Nem por isso deixam de prestar e receber obséquios, uma vez que o seu espaço social não lhes faculta outro modo de sobreviver. Contudo, desincumbem-se de sua parte a frio, sem envolvimento pessoal, buscando inibir o jogo de simpatia e reciprocidade, e também de endividamento, inseparável da prática do pavor. Essa atitude cerceadora de si e dos outros não se deve tomar apenas como psicologia, pois representa o resultado de uma experiência de classe, uma espécie de heroísmo na renúncia, refletido e peculiar, adequado à circunstância histórica. A frieza paradoxalmente responde à hipótese mais favorável ao dependente, aquela em que, embora desamparado de qualquer direito, ele seria tratado como igual - porque a parte mais afortunada quis assim. Condicionada por um inaceitável ingrediente de capricho, essa hipótese feliz constituiria o obséquio maior de todos, e por isso mesmo a maior indecência e humilhação.
A sujeição da dignidade, dos valores românticos e liberais à desfaçatez de um proprietário é o pesadelo característico a que a reserva dos pobres deveria pôr um paradeiro, mesmo ao preço de ficar tudo como está.
A prosa que não verbaliza com liberdade o conflito exposto na intriga constitui a principal limitação artística de "Iaiá Garcia". A deficiência não decorre de falta de recursos, mas da restrição ideológica imposta pelo propósito de civilizar sem faltar ao respeito. Por outro lado, a restrição tem fundamento prático na posição dos inferiores, que não dispõem da independência necessária à crítica, o que empresta uma nota situada e realista ao convencionalismo dos termos. Ainda assim, a injustiça das relações como que pressiona o padrão comportado da escrita, cuja insuficiência é objetiva e faz desejar um narrador menos coibido em face dos proprietários. Tanto mais que o romance termina com a heroína procurando no trabalho assalariado o remédio para a "vida de dependência e servilidade" (3) a que o paternalismo obriga o pobre. Estava alcançada a posição a partir da qual o desplante tranquilo dos abastados se podia encarar sem subserviência, fixado em seu arcaísmo e no vínculo inconfessável com a escravidão. Assim, o último romance da primeira fase trazia inscrito em negativo um outro livro - o seguinte? - onde a superação da dependência pessoal pelo trabalho livre, um avanço histórico, permitiria expor sem rebuços o caráter inaceitável e destrutivo das relações de dominação próprias ao período "anterior". Sabemos contudo que Machado não escreveu tal obra, e que o caminho do país tampouco seria esse.
Passados os anos, é notório que o fim do cativeiro não transformou escravos e dependentes em cidadãos, e que a tônica do processo, pelo contrário, esteve na articulação de modos precários de assalariamento com as antigas relações de propriedade e mando, que entravam para a nova era sem grandes abalos. Nalguma altura anterior às "Memórias" e posterior a "Iaiá", faltando um decênio para a Abolição, o romancista se terá compenetrado desse movimento decepcionante e capital. O arranjo civilizado das relações entre proprietários e pobres, que estivera no foco do trabalho literário da primeira fase, ficava adiado "sine die". De agora em diante Machado insistiria nas virtualidades retrógadas da modernização como sendo o traço dominante e grotesto do progresso na sua configuração brasileira. Voltando a "Iaiá Garcia", o esquema europeu embutido na sua intriga, ligado à dinâmica moralizadora do trabalho livre, estava fora de combate.
Se estivermos certos, esse quadro permite apreciar a genialidade da viravolta operada nas "Memórias". Já não se trata de buscar um freio - irreal - à irresponsabilidade dos ricos, mas de salientá-la, de emprestar latitude total a seu movimento, incontrastado e nem por isso aceitável. O tipo social do proprietário, antes tratado como assunto entre outros e como origem de ultrajes variados, passava agora à posição (fidedigna?) de narrador. Ou, por outra, as condutas reprováveis (mas não reprovadas) do primeiro reapareciam transformadas em procedimento narrativo, onde o vaivém entre arbítrio e discurso esclarecido, causa do mal-estar moral e prático dos pobres, se encontrava universalizado, afetando a totalidade da matéria romanesca. Ajustando melhor o foco, digamos que a volubilidade narrativa confere a generalidade da forma e o primeiro plano absoluto ao passo propriamente intolerável dos relacionamentos de favor, aquele em que segundo a conveniência ou veneta do instante a gente de bem se pauta ou não pela norma civilizada, decidindo "entre duas xícaras de chá" (4) sobre a sorte de um dependente. Sai de cena o narrador constrangido dos primeiros romances, cujo decoro obedecia às precauções da posição subalterna, e entra a desenvoltura característica da segunda fase, a "forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre" (5), cujo ingrediente de contravenção sistemática reproduz um dado estrutural da situação de nossa elite. No caso há vínculo evidente, embora complicado, entre as questões de forma literária e classe social: o ponto de vista troca de lugar, deixa a posição de baixo e respeitosa pela de cima e senhorial, mas para instruir o processo contra essa última. Noutros termos, Machado se apropriava da figura do adversário de classe, para deixá-lo mal, documentando com exemplos na primeira pessoa do singular as mais graves acusações que os dependentes lhe pudessem fazer, seja do ângulo tradicional da obrigação paternalista, seja do ângulo moderno da norma burguesa. Depois do proprietário visto da perspectiva ressabiada do dependente, temos o dependente visto da perspectiva escarninha do proprietário, "que se dá em espetáculo" (6). Em âmbito biográfico, talvez se pudesse imaginar que Machado havia completado a sua ascensão social, mas não alimentava ilusões a respeito, nem esquecia os vexames de situação anterior. Essa reorganização do universo literário é profunda e carregada de consequência, das quais veremos algumas.
A volubilidade narrativa torna rotineira a ambiguidade ideológico-moral dos proprietários, diferentemente dos romances iniciais, onde essa tivera estatuto de momento excepcional e revelação, com lugar crucial na progressão dramática. A reversibilidade metódica entre as posturas normativa e transgressiva agora veio a ser a ambiência geral da vida. Ficam inviabilizados os desdobramentos contraditórios longos, dotados de travejamento ideológico e crise objetiva, próprios ao Realismo europeu, substituídos por um movimento global "sui generis", com fundamento histórico não menor: em lugar da dialética, o desgaste das vontades. A normalização literária de um dado estrutural da sociedade brasileira não significava entretanto justificação. Pelo contrário, o caráter insustentável da volubilidade ressalta a todo instante, ao passo que nos romances anteriores, por prudência, ele não fora frisado. Esses últimos queriam remediá-los, enquanto nas "Memórias", onde não há saída à vista, o objetivo é enxergá-lo na sua extensão e na envergadura dos danos causados.
Em que consiste a reserva auto-imposta do narrador dos romances iniciais? No que toca à relação entre proprietários e dependentes, o comedimento está em não glosar com verve os prolongamentos mais perversos da dominação pessoal direta; e no que toca ao significado contemporâneo daquela relação, em não expor a gente de bem ao critério burguês que a condenaria. Contudo, ao esquivar o ponto de vista moderno em deferência aos abastados, cuja dignidade, muito sublinhada, parece independer dos abusos que praticam, Machado plantava o seu romance em terreno apologético e provinciano; construía um espaço à parte, a salvo do julgamento da atualidade, esse último como que localmente desativado. Ora, o narrador volúvel põe fim à segregação protetora. Ao faltar com estardalhaço às regras de equilidade e razão, ele as reconhece e torna efetivas, patenteando em toda linha, enquanto dado presente, a discrepância entre as nossas formas sociais e o padrão da civilização burguesa.
Do mesmo modo, os romances da primeira fase têm pouco espaço para as manifestações mais espetaculares da nova era, tais como a política parlamentar, o cultivo da ciência, a empresa capitalista, a filosofia da evolução, o progresso material. A quase ausência não decorre de desinteresse, mas da evidência do caráter precário dessas atividades no país, difíceis de conciliar sem ridículo com as formas de dominação vigentes. Por outro lado, não podiam também faltar completamente, uma vez que eram indispensáveis à verosimilhança oitocentista e à presunção civilizada da gente fina. Com o tino realista necessário à idealização, Machado tratava o interesse pelas matemáticas, pelos versos, pela construção de pontes, pela pesquisa histórica ou pela Câmara de Deputados como simples complementos da elegância senhorial. A posição secundária dos índices de modernidade permitia passar por alto o aspecto atrasado de nossos adiantados, embora ao preço de certa nota, de irrelevância e falta de atualidade gerais, que matam esses romances no conjunto. A partir das "Memórias", entretanto, quando a dignidade dos senhores vem à berlinda e deixa de ser tabu, haverá inversão de sinais e também de proporções. Conforme tivemos ocasião de ver, as novidades da civilização burguesa agora ocupam a cena. Aí estão em primeiro plano filosofias recentes, teorias científicas, invenções farmacêuticas, projetos de colonização e vias férreas, bem como o liberalismo, o parlamento, a imprensa política etc., ainda que sempre desfigurados pela subordinação a uma certa desfaçatez de classe, a qual é a verdade crítica da dignidade proprietária pretendida nos romances do primeiro período. A desprovincianização literária ocorre em grande escala, seja degradando a figura das relações sociais locais, confrontadas ou expostas à norma e ao progresso da civilização burguesa, nunca sem vexame, seja desmoralizando a reputação incondicional destes mesmos progressos e normas levados, no contexto, a desempenhar papéis deslocados e contrários ao seu conceito.
As liberdades narrativas peculiares à segunda fase começam sob o signo de Sterne, conforme a conhecida indicação de Machado. Observe-se contudo que na ocasião a prosa borboleteante era velha conhecida não só do romancista, como de muitos outros literatos brasileiros, que a praticavam nos folhetins semanais da imprensa imitando modelos franceses (7). A miscelânea de crônica parlamentar, resenha de espetáculos, notícia de livros, coluna mundana e anedotas variadas, com intuito de recreio, compunha um gênero bem estabelecido - e de estatuto "pouco sério". Devido talvez a essa conotação duvidosa, várias de suas propriedades formais acabaram entrando para a feição do novo período machadiano, por razões que veremos.
A notação política, por exemplo, solicitava o registro conciso das posições, mais apimentado quando essas se mostram absurdas, risíveis, deletérias etc. Por sua vez, a disparidade tão "moderna" dos problemas surgidos no âmbito do parlamento, paralela à indiferença recíproca e à incongruência de matérias procedentes do mundo inteiro, acomodadas ao acaso numa página de jornal, ou no espaço de uma crônica, incitava ao ponto de vista de Sirius. A disposição sumária sobre os diferentes assuntos, o grande número deles, a passagem inevitavelmente arbitrária de um a outro, introduziam o elemento de bazar e capricho. Expressivo da situação aleatória e spleenética do indivíduo contemporâneo, esse mesmo capricho se prestava à poetização, e também ao papel de chamariz, atendendo à necessidade comercial de prender o leitor. Com efeito, na ambiência imaginária originada pela imprensa e intensificada no folhetim, o público era induzido a se comportar como consumidor na escala do planeta. E o folhetinista, explorando como atrativos a variedade, a novidade, a vivacidade, o preço, o exclusivismo etc., transpunha para a técnica da prosa os mandamentos práticos da mercadoria.
A lista de traços comuns à crônica hebdomadária e às "Memórias Póstumas" pode ser encompridada à vontade. Com funções diversas, a amálgama de atualismo e futilidade está presente nos dois casos. Entretanto, se desde a juventude Machado dominava essa técnica, à qual se prende, como vimos, a superioridade da "segunda maneira", por que só agora ele a trazia para a esfera do romance? A questão é interessante, pois leva a especificar de maneira imprevista os passos de um indiscutível "progresso literário". Nos anos 70, quando escrevia os seus quatro romances fracos, quase privados de atmosfera contemporânea, Machado já era forte nas piruetas petulantes e cosmopolitas do folhetim semanal. O que faltava, para completar a configuração artística da maturidade, não era portanto o procedimento narrativo. A reviravolta pendente, que permitiria incorporar à elaboração romanesca uma técnica disponível e comum a muitos, era de ordem ideológica. De modo genérico, pode-se imaginar que a literatura de jornal, "frívola e algo cínica", parecesse incompatível com ambições artísticas sérias. Mais decisivamente, aqueles "defeitos" representavam o oposto da "fidelidade e retidão" que seria preciso quase exigir dos proprietários, como única segurança para o desamparo dos dependentes. Assim, a saída histórica buscada nos romances da primeira fase supunha lealdades morais e compromisso com a promoção social dos pobres, sobretudo os mais dotados, lealdade e compromisso que deveriam primar sem mistura sobre a definição "burguesa" do interesse, à qual no entanto os proprietários não podiam também deixar de estar submetidos. Quando percebe-se o infundado daquela expectativa, Machado se capacita da pertinência das modalidades de rebaixamento a que o folhetim emprestava o brilho, e as transforma em ambiente espiritual. Os novos tipos de consumo e propriedade, em face dos quais o dependente pobre, pela força das coisas, se encontra desvalido, saem da sombra e passam a dar a nota. Sob o patrocínio prestigioso de Sterne, e também das condutas anti-sociais cultivadas e estetizadas na prosa de folhetim, a volubilidade narrativa irmana e faz alternarem os arrancos da impunidade patriarcal e o pouco-se-me-dá do proprietário moderno, o arbítrio da velha oligarquia escravista e a irresponsabilidade da nova forma de riqueza. Reencenava e apontava à execração dos bons entendedores a ambiguidade característica da classe dominante brasileira (8).
Assim, o princípio formal desenvolvido nas "Memórias" soluciona e ergue a novo patamar os impasses apurados no romance machadiano da primeira fase. A dialética de conteúdo, experiência social e forma é rigorosa, com ganho verdadeiramente imenso em qualidade artística, justeza histórica, profundidade e amplitude de visão. Para apreciar o alcance desse processo, cujas faces crítica e cumulativa dependem uma da outra, convém tomar distância.
Do ponto de vista da evolução literária local, a estreiteza dos romances do primeiro período não constituiu apenas um defeito, como as nossas observações poderiam fazer crer. Noutra parte mostramos que essas obras respondiam com discernimento a certa falha do realismo praticado por Alencar, à qual escapavam, ainda que ao preço de engendrar deficiências de outra ordem, talvez menos simpáticas. Com efeito, estudando "Senhora" pudemos constatar um verdadeiro sistema de desajustes ideológicos e estéticos. Se não erramos, esse decorre da adoção acrítica de uma fórmula da ficção realista européia ligada à concepção romântica e liberal do indivíduo, pouco própria, por isso, para refletir a lógica das relações paternalistas. A conjunção inocente de matéria local e forma européia nova atendia ao desejo de atualidade dos leitores mais informados, mas desconhecia a química própria a essa mistura. Em consequência, as notações sociais, ou seja, a sociedade efetivamente observada, pouco interagem com a linha mestra da intriga, permanecendo estranhas uma à outra, o que não as impede, no plano geral da composição, de se desacreditarem reciprocamente. Resulta um universo literário fraturado, onde as reivindicações românticas - a mola da fábula - têm sempre algo de afetação risível, postiça e "importada" (9). Assim, quando o primeiro Machado recuava do terreno dito contemporâneo e praticamente excluía de seus romances o discurso das liberdades individuais e do direito à auto-realização, discurso novo e crítico, ele estava fugindo à posição falseada em que se encontravam a ideologia liberal e as ostentações de progresso nas condições brasileiras. Uma vez firmado, esse mesmo discernimento lhe permitirá partir das "Memórias", reintroduzir em massa as presunções de modernidade, só que agora explicitamente marcadas de diminuição e deslocamento, como covinha à circunstância, solucionando o problema artístico armado na ficção urbana de Alencar e evitado, ao preço do confinamento à esfera da dominação intrafamiliar, em seus próprios trabalhos da primeira fase.
Por sua vez, sem prejuízo da ingenuidade, o realismo alencarino dos "perfis de mulher" se pode ver como resposta refletida a romances anteriores de Joaquim Manuel de Macedo, em relação aos quais progredia. Como termo de comparação, sirva de exemplo o capítulo 4 de "O Moço Loiro" (1845), onde duas formosas sinhazinhas estão postadas à janela de uma chácara, contemplando a lua e o mar. Dissertam sobre os horrores da situação de herdeira: como poderiam crer nas declarações de amor dos pretendentes, se inevitavelmente essas serão devidas ao dinheiro dos pais e a outros pensamentos ainda mais cínicos? O autor de "A Moreninha" fixara a ressonância poética, maior do que parece, da conjunção de ambiente patriarcal, paisagem fluminense e chavões ultra-românticos, bem aproveitada pelo seu sucessor. A graça da cena está na artificialidade das idéias, gritante ainda em se tratando de mocinhas com "o dobro da instrução que soem ter nossas patrícias" (10). A função dos discursos desiludidos das meninas não é crítica, mas lisonjeira, ou, por outra, não é desenvolver as grandes linhas da situação em que se encaixam, mas lhe atestar o vínculo com a civilização contemporânea. Com menos complacência, ou complacência de outra ordem, a mesma atmosfera e um assunto comparável foram expostos em "Senhora", onde se desdobram as etapas da compra e ulterior redenção de um marido. O leitor estará lembrado da organização muito estridente do livro, dividido em quatro partes - "O Preço", "Quitação", "Posse" e "Resgate" - conforme a terminologia das transações comerciais. Assim, Alencar trazia o rigor analítico (um tanto disparatado) e a seriedade da indignação moral (também um pouco fora de foco) ao universo sobretudo faceiro e amigo de novidades de seu predecessor. Nem por isso a razão e a dignidade muito enfáticas deixavam por seu turno de ser faceirices, provas de adiantamento e europeísmo antes que esforços efetivos de lucidez - repetindo, em nível mais elaborado, a constelação a superar. Os funcionamentos especiosos da vibração moralista e da verve analítica, enfeiadas pelo fundo de elitismo, funcionamentos tão incômodos em Alencar, adiante formariam entre os grandes achados críticos das "Memórias", de cuja matéria literária fazem parte sistemática. Ao lhes sublinhar o motivo imediatista e compensatório, em desacordo com a gesticulação ilustrada, Machado reconstituía em novo plano, eletrizado pelo discernimento moral e pelo empenho da inteligência, ambos girando em falso, a inconsequência amena que movimenta a prosa de Macedo.
Uma corrente de comicidade muito mais franca e popular é formada por França Júnior, Manuel Antônio de Almeida e Martins Pena. O traço distintivo está na sem-cerimônia extraordinária com que são tratadas ou desconhecidas as idéias capitais da burguesia oitocentista. Os autores dão de barato a posição precária da normatividade nova no país, e aliás enxergam aí um elemento alegre, de desafogo. Veja-se, no caso dos "Folhetins" de França Júnior, a promiscuidade pitoresca entre as presunções europeístas e as realidades de escravidão, clientelismo e antiga família patriarcal, promiscuidade que já é a mesma de Machado de Assis, descontada a consciência crítica.
No "Inglês Maquinista", de Martins Pena, anterior ainda à cessação do tráfico, tudo está na deliberada falta de decoro das combinações temáticas. Assim, os três pretendentes de Mariquinhas são um primo pobre, honesto e patriota, um contrabandista de africanos, com barba até dentro dos olhos, e um "english" vigarista, tão desonesto como o outro; a mãe da moça bate em negros para desafogar o peito, faz vestidos de seda com as modistas francesas, de chita com a Merenciana, é mestra em usar empenhos para se apropriar de escravos da Casa de Correção, e naturalmente prefere os namorados com dinheiro. E embora não pairem dúvidas no que respeita ao bem e ao mal, o primeiro não goza de tratamento literário distinto, convivendo em igualdade de condições e dentro de toda intimidade com barbárie e contravenções de toda ordem. Essa equanimidade, embutida no andamento lépido, se poderia atribuir ao gênero farsesco, o que no entanto seria desconhecer o senso histórico do Autor. Digamos então que o clima de farsa permitia fixar artisticamente algumas das constelações escandalosas da normalidade nacional (11).
A solução encontrada por Manuel Antônio de Almeida nas "Memórias de um Sargento de Milícias" é menos palpável, mas aparentada. Antonio Candido assinalou o convívio de bonomia e cinismo em sua prosa, cujo balanço abre espaço para os dois lados de todas as questões, encaradas ora do ângulo da ordem social, ora do ângulo da transgressão. Daí uma certa suspensão do juízo moral, e também da ótica de classe, em contaste benfazejo com a entonação "crítica" desenvolvida pelos românticos, sobretudo por Alencar, impregnada de indignação um pouco farisaica e presunções de superioridade pessoal. Antonio Candido nota ainda a ressonância "brandamente fabulosa" daquele ritmo, que sugere um mítico "mundo sem culpa", "um universo que parece liberto do peso do erro e do pecado" (12). Para ligar ao nosso esquema essas observações - em que nos inspiramos largamente - acrescentemos que a narrativa se passa num Antigo Regime meio fantasioso contrastante com a nossa época "normalizada". "Era no tempo do rei", quando os meirinhos e demais funcionários se vestiam e conduziam de acordo com a majestade de seu cargo, não como os de hoje, que "nada têm de imponentes, nem no seu semblante nem no seu trajar" (13). É claro que o encanto dos outros tempos não decorre só da vestimenta e dos costumes coloridos, mas sobretudo da ausência tangível do sentido moral moderno, a qual, para os súditos desse último, adquire conotação utópica. Assim, não deixa de haver tensão entre a consciência moral, de que a condução da prosa tacitamente tem e dá notícia, ainda que apenas para a passar por alto, e o mundo de arranjos pessoais, propiciado pelo clientilismo. A comicidade sutilmente moderna do livro depende desse distanciamento.
Digamos então que, sem prejuízo da acentuação diversa, as vertentes que indicamos exploram e desdobram uma mesma problemática, de origem extraliterária, proposta pelas grandes linhas da realidade nacional e de sua inserção no mundo contemporâneo. A matriz prática se havia formado com a Independência, quando se articularam perversamente as finalidades de um estado moderno, ligado ao progresso mundial, e à permanência da estrutura social engendrada na Colônia. Entre essa configuração e a das nações capitalistas adiantadas havia uma diferença de fundo. Inscrita no quadro da nova divisão internacional do trabalho, e do correspondente sistema de prestígios, a diferença adquiria sinal negativo: significava atraso, particularidade pitoresca, alheamento das questões novas, atolamento em problemas sem relevância contemporânea. Enredados nessa trama, alienante em sentido próprio, caberia ao trabalho artístico e à reflexão histórico-social desfazer a compartimentação e descobrir, ou construir, a atualidade universal de imensos blocos de experiência coletiva, estigmatizados e anulados como periféricos.
Recapitulando, o nosso percurso tem como ponto de partida a polarização "sui generis" e desconcertante a que a vida nacional submetia um conjunto de categorias pertencentes à experiência moderna. A peculiaridade social terá sido notada e refletida de inúmeras maneiras, desde as cotidianas, que ficaram sem registro, até as conservadas em jornal ou livro. No campo artístico, alinhada com os modos de reação mais imediata e popular, observamos uma pequena tradição de literatura cômica, despretenciosa mas de irreverência notável. Orientados pelo senso romântico da peculiaridade histórica, e cientes da impostura que, nas circunstâncias locais, aderia ao modelo de personalidade próprio ao mesmo Romantismo, esses escritores tratam sem deferência o ponto de vista e os costumes ditos "adiantados", e sobretudo não lhes conferem privilégio sobre o dia-a-dia pouco prestigioso e não-burguês do Rio de Janeiro. A relevância crítica desse humorismo, o seu vínculo com a Colônia bem como o seu prolongamento moderno em "Macunaíma" e no "Serafim Ponte Grande" foram assinalados por Antonio Candido (14). Em contraste, a linha Macedo-Alencar adaptava à boa sociedade fluminense as complicações da aspiração subjetiva, do foro íntimo, do sentimento liberal, ou, mais geralmente, da individualidade que se quer autônoma - donde os desencontros que já estudamos e que, nos romances da sua primeira fase, Machado trataria de abafar. Nas "Memórias Póstumas", por fim, o movimento alcança uma síntese superior, que lhe recupera os momentos ruins e bons, e os transforma em acertos máximos. A interioridade funciona a todo vapor, cheia de desvãos e revelações, mas despegada do chique, da superioridade e do potencial reformista que em graus diferentes Macedo e Alencar lhe tinham atribuído. Tratado como caixa de compensações imaginárias, em sintonia com avanços decisivos na concepção científica do homem, o universo interior não pressiona em direção de progresso algum. Ajusta-se à ciranda viva e sem tendência à auto-reforma que a literatura de inspiração popular soube inventar, calcada em dinamismos reais da sociedade brasileira. O ritmo de Martins Pena e Manuel Antônio de Almeida está retomado no "Brás Cubas", só que agora trazido às alturas alencarinas do sentimento-de-si mais exigente e contemporâneo, que o condena enfaticamente e nem por isso deixa de se acumpliciar com ele, passando a integrá-lo e sendo condenado por sua vez (15).
Assim, a técnica narrativa das "Memórias Póstumas" resolvia questões armadas por 40 anos de ficção nacional e, sobretudo, encontrava movimentos adequados ao destino ideológico-moral implicado na organização da sociedade brasileira. Como se vê, os problemas estéticos têm objetividade, engendrada pela História intra e extra-artística. Ao enfrentá-los, ainda que sob a feição depurada de uma equação formal, o escritor trabalha sobre um substrato que excede a literatura, substrato ao qual as soluções alcançadas devem a força e a felicidade eventuais. As questões de forma não se reduzem a questões de linguagem, ou são questões de linguagem só na medida em que essas últimas vieram a implicar outras do domínio prático. Pelo simples diagrama, a célula elementar do andamento machadiano supõem, em nível de abrangência máxima, uma apreciação da cultura burguesa contemporânea, e outra da situação específica da camada dominante nacional, articuladas na disciplina inexorável e em parte automatizada de um procedimento, a que o significado histórico desse atrito empresta a vibração singular.
A inspiração materialista de nosso trabalho não terá escapado ao leitor. O caminho que tomamos entretanto vai na direção contrária do habitual. Ao invés do artista aprisionado em constrangimentos sociais, a que não pode fugir, mostramos o seu esforço metódico e inteligente para captá-los, chegar-se a eles, lhes perceber a implicação e os assimilar como condicionantes da escrita, à qual conferem ossatura e peso "reais". A prosa disciplinada pela história contemporânea é o ponto de chegada do grande escritor, e não o ponto de partida, esse sempre desfibrado, na sociedade moderna, pela continência e o isolamento do indivíduo.
Voltando a Machado de Assis, vimos que a sua fórmula narrativa atende meticulosamente às questões ideológicas e artísticas do oitocentos brasileiro, ligadas à posição periférica do país. Acertos, impasses, estreitezas, ridículos, dos predecessores e dos contemporâneos, nada se perdeu, tudo se recompôs e transfigurou em elemento de verdade. Por outro lado, longe de representar um confinamento, a formalização das relações de classe locais fornece a base verossímil ao universalismo caricato das "Memórias", um dos aspectos da sua universalidade efetiva. Os imperativos da volubilidade, com feição nacional e de classe bem definida, imprimem movimento e significado histórico próprios ao repertório ostensivamente antilocalista de formas, referências, tópicos etc., cujo interesse artístico reside nessa mesma deformação. A notável independência e amplitude de Machado no trato literário com a tradição do Ocidente depende da solução justa que ele elaborou para imitar a sua experiência histórica.
Lembremos por fim a nota perplexa que acompanha as intermináveis manobras, ou infrações, do "defunto autor": a norma afrontada vale deveras (sob pena de o atritamento buscado não se produzir), e não deixa contudo de ser a regra dos tolos. Postos em situação, como reagimos? entramos para a escola de baixeza desse movimento, ou nos distanciamos dele, e o transformamos num conteúdo cujo contexto cabe a nós construir? Com perfil realçado mas enigmático, à maneira de Baudelaire e Flaubert, Dostoiévski e Henry James, o procedimento artístico se coloca deliberadamente a descoberto, como parte, ele próprio, do que esteja em questão. Não porque a literatura deva tratar de si mesma, segundo hoje se costuma afirmar, mas porque na arena inaugurada em meados do século passado, cuja instância última é o antagonismo social, toda representação passava a comportar, pelas implicações de sua forma, um ingrediente político, e a ousadia literária consiste em salientar isso mesmo, agredindo as condições da leitura confiada e passiva, ou melhor, chamando o leitor à vida desperta (16). Como é sabido, a dívida técnica mais patente das "Memórias" é setencentista, e não será ela o essencial da novidade de um autor do último quartel do século 19. A imitação fiel da desfaçatez da classe dominante brasileira; o sentido agudo de seu significado contemporâneo e efeito deletério; a incerteza completa quanto a seu prazo no tempo e - ousadia suprema - quanto à superioridade da civilização que lhe servia de modelo inalcançado: a esse conjunto complexo, de alta maturidade, deve-se a saliência especificamente moderna da forma machadiana, tão nítida e desnorteante. O método narrativo purgava de complacência patriótica e beletrística (isso quando não funcionasse ao contrário...) o sentimento amável e cediço que a nossa elite tinha de si mesma, o qual se via mudado numa cifra - implacável entre as implacáveis - do destino da civilização burguesa. Ao contrário do que faz supor a voga atual do anti-realismo, a mimese histórica, devidamente instruída de senso crítico, não conduzia ao provincianismo, nem ao nacionalismo, nem ao atraso. E se uma parte de nossos estudiosos imaginou que o mais avançado e universal dos escritores brasileiros passava ao largo da iniquidade sistemática mercê da qual o país se inseria na cena contemporânea, terá sido por uma cegueira também ela histórica, patente mais ou menos longínqua de desfaçatez que machado "imitava".



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1. Para uma análise mais pormenorizada, Roberto Schwarz. "O Paternalismo e a sua Racionalização nos Primeiros Romances de Machado de Assis", in "Ao Vencedor as Batatas", São Paulo, Duas Cidades, 1977.
2. "Iaiá Garcia", Obra completa, vol. 1 pág. 315.
3. "Iaiá Garcia", pág. 406.
4. "Iaiá Garcia", pág. 402.
5. "MPBC", pág. 109.
6. Alfredo Bosi refere-se ao "tom pseudoconformista, na verdade escarninho, com que (o narrador) discorre sobre a normalidade burguesa". Em "A Máscara e a Fenda", A. Bosi et al., "Machado de Assis", São Paulo, Ática, 1982, pág. 457.
7. "O folhetinista é originário da França, onde nasceu, e onde vive a seu gosto, como em cama no inverno. De lá espalhou-se pelo mundo, ou pelo menos por onde maiores proporções tomava o grande veículo do espírito moderno; falo do jornal/ (...) o fohetim nasceu do jornal, o folhetinista por consequência do jornalísta. Esta íntima afinidade é que desenha saliências fisionômicas na moderna criação./O folhetinista é a fusão admirável do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo. Esses dois elementos, arredados como pólos, heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do novo animal". Machado de Assis, "O Folhetinista" (1985), Obra Completa, vol. 3, pág. 968. O tema está exposto de maneira ampla e documentada em Marlyse Meyer, "Voláteis e Versáteis, de Variedades e Folhetins se faz a Chrônica", xerox, 1987.
8. A crônica de jornal como lugar de encontro entre a modernização e a tradição foi estudada por Davi Arrigucci Jr., "Fragmentos sobre a Crônica", in "Enigma e Comentário", São Paulo, Companhia das Letras, 1987.
9. Roberto Schwarz, "A Importação do Romance e suas Contradições em Alencar, in "Ao Vencedor as Batatas".
10. Joaquim Manoel de Macedo, "O Moço Loiro", s/1, Ediouro, s/d, pág. 33.
11. Ver a respeito as numerosas observações de Vilma Arêas, "Na Tapera de Santa Cruz", São Paulo, Martins Fontes, 1987.
12. Antonio Candido, "Dialética da Malandragem", págs. 84-88.
13. Manuel Antônio de Almeida, "Memórias de um Sargento de Milícias", Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1962, págs. 7-8.
14. Antonio Candido, op. cit., pág. 88.
15. A propósito de um conto de Machado, "O Diplomático", Vinicius Dantas estudou as continuidades e diferenças entre a prosa machadiana da maturidade e a comicidade popularesca dos anos 1830 e 40, cultivada na imprensa. "O Narrador Cronista e o Narrador Contista", trabalho de aproveitamento da Unicamp, 1984.
16. "Se não cursaste a retórica/ Do fino professor Satã/ Joga este livro!/ Não entenderás nada/ E me acreditarias histérico", Charles Baudelaire, "Epigrafe para um Livro Condenado". Os versos são dirigidos ao "Leitor pacato e bucólico,/Sóbrio e ingênuo homem de bem".

Folha de São Paulo