segunda-feira, 8 de junho de 2009

A Emancipação do Discurso - Vols. 1 e 2


A invenção da América

Fábio De Souza Andrade

A Emancipação do Discurso - Vols. 1 e 2
Vários autores
Organizadora: Ana Pizarro Memorial da América Latina, Ed. da Unicamp, 829 págs.

No discurso latino-americano, o Brasil costuma aparecer às vezes como um imenso aposto, às vezes como uma adversativa -um país ilhado em língua própria, em autocontemplação satisfeita ou preocupada de suas diferenças e dimensões, cioso de sua singularidade. É preciso desfazer energicamente esta confusão. Um país, uma nação, mesmo uma comunidade de países, não é questão apenas de cercas e fronteiras. É coisa mental, como a poesia. E, se um país se faz mesmo com homens e livros, nunca isso foi tão verdade quanto durante o romantismo, quando também a poesia fez da idéia de nação o seu oxigênio.
Os ensaístas do segundo volume da obra coletiva "América Latina: Palavra, Literatura e Cultura" tratam justamente da "emancipação do discurso" literário durante o século 19 nestes países emergentes, saindo ou recém-saídos do contexto colonial, em busca de identidades próprias e às voltas com problemas comuns. Emancipação também da própria arte das palavras, caminhando ao longo do século em direção à profissionalização dos escritores e do esteticismo dos movimentos de vanguarda. Através desta coletânea, acompanha-se a progressiva submissão da literatura a uma especialização do saber. Sua importância, antes dispersa por todas as esferas da vida latino-americana, concentra-se. No lugar de uma literatura de sondagens, tentacular, afirma-se uma de maior consciência formal, menos diletante e abrangente, mais madura e autocentrada.
O recorte cronológico do volume coincide com o período do historicismo e particularismo românticos. Os primeiros ensaios tratam justamente da transição do pensamento ilustrado para o romântico, na virada do século 18. Jorge Reudas de la Serna, por exemplo, faz uma revisão do arcadismo brasileiro à luz da assimilação brasileira do Iluminismo. O professor e diplomata mexicano mostra que, sob a aparente neutralidade e universalismo da forma neoclássica, se escondem pressões locais e externas, um forte e conflitivo desejo de originalidade. Como resultado, confessamente tributário de Antonio Candido, Ruedas de la Serna afirma que obras como a dos árcades brasileiros não podem ser reduzidas a uma manifestação epigonal e obediente das academias européias.
Os movimentos de independência política representam no contexto latino a troca de interlocutores e de modelos. As colônias ibéricas voltam-se para França em particular e, no contexto local, acentuam as diferenças entre si. O caso brasileiro tem suas particularidades. Enquanto os vizinhos precisavam inventar peculiaridades e mitos de fundação que os identificassem, o Brasil buscava suprimir os focos de divergência regional e fortalecer uma imagem comum, mas para isso precisou também cultivar uma genealogia mitologizada, fabricada.
Estamos às voltas com a fundação de literaturas nacionais, evidente em artigos como o de Flora Süssekind, atenta ao trabalho de ferreiros que os escritores românticos brasileiros têm para forjar uma língua própria. A decisão por um estilo impuro é pensada. Do empenho em criar um país novo, vem a necessidade de mesclar à fala hegemônica, herança do colonizador, a expressão local, expurgar ou ampliar vocabulários como gesto político.
A invenção simultânea de país e literatura fica clara também no ensaio de Jaime Alazraqui, que descreve a invenção do romance e do conto argentinos em meio ao torvelinho social-político do processo de modernização dos pampas. Exilados durante a ditadura de Rosas, a ficção de Sarmiento, Echeverría e Marmól diagnostica e representa liberariamente a crise do país, em meio ao surgimento de caudilhos e dos primeiros embriões do populismo. Apanha no ar e coloca em palavras uma terra que ainda se reconhecia na liderança dos estancieiros do Plata, ao mesmo tempo em que passa a flertar com o cosmopolitismo inglês.
A valorização do único, do próprio, do peculiar, em suma, das diferenças, traduziu-se em desafio de incorporação ou cooptação de expressões literárias populares. A equivalência entre nacional e popular aparecia como defesa natural contra a atração das culturas estrangeiras. Não são poucos os ensaios que mostram o quanto de idealização -paradoxalmente, carregada de valores eurocêntricos- permeou esta equação romântica, transfigurando o local em pitoresco, em exótico.
Mas a opção pelo típico foi mais do mera ideologia. A aproximação da literatura tradicional, da oralidade da poesia popular deu corpo a boa parte da literatura latina do século passado. O volume organizado por Ana Pizarro traz tanto ensaios dedicados a uma apresentação panorâmica das diversas correntes regionalistas do continente (a poesia gauchesca, o cordel brasileiro, as expressões ligadas às culturas indígenas), como discussões sobre as modalidades de apropriação desta herança, de assunto a elemento determinante da forma.
O leque de possibilidade no estudo das relações entre palavra e vida social é explorado de ponta a ponta no volume -desde a instrumentalização documental do fato literário, até a realização da mais tradicional história literária, o elenco de nomes e obras. Isto se explica em parte pelo gigantismo do projeto -envolvendo mais de 20 autores por volume- em parte também pelo tamanho da ignorância recíproca, que obriga, a cada passo em busca das semelhanças, a recomeçar do princípio, recapitular ab ovo.
Mas a diversidade de enfoques mostra também a pluralidade metodológica. Ao lado de ensaios marcadamente influenciados pelo último grito acadêmico -a reescrita da teoria e história literárias a partir do ponto de vista de minorias (mulheres, literatura engajada etc)-, aparecem estudos monográficos sobre figuras singulares e gigantes na literatura do continente. Este é o caso de trabalhos como o de Walnice Nogueira Galvão, sobre Euclides da Cunha, ou o de Roberto Schwarz, sobre Machado de Assis, estudando na ascensão e queda de Capitu, os motivos sociais que tornam Bentinho, o narrador pouco confiável de "Dom Casmurro", uma construção convincente, representativa e genial.
Nem todos estudos encontram o balanço feliz entre palavra, literatura e cultura. Mas, ainda que desequilibrado aqui e ali, o conjunto não deixa de acender uma vela no breu. Tem o mérito esclarecedor de combater um desconhecimento vergonhoso e convidar à reflexão sobre os fios que interligam idéias de pensadores aparentemente tão remotos. Até o mais ferrenho adversário do latino-americanismo, se pegará matutando sobre o que faz, por exemplo, das imagens do Eldorado, da Terra da Utopia e da "raça americana" esperança da humanidade tão recorrentes? Por que atravessaram os séculos e entusiasmaram pensadores tão distantes ideologicamente quanto os mexicanos Alfonso Reyes, José Vasconcelos ou o nosso Darcy Ribeiro? O comparatismo, apenas engatinhando entre nós, se encarregará de responder.
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE é professor de teoria literária na Universidade Estadual Paulista

Folha de São Paulo

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