terça-feira, 28 de abril de 2009

WALT WHITMAN


A pluralidade de Whitman
Paulo Henriques Britto

Em 1892, quando Walt Whitman morreu, sua obra já havia tido eco no estrangeiro, principalmente na Grã-Bretanha e nos países germânicos. Mas este impacto inicial era apenas um pálido prenúncio do que viria a suceder no novo século. Whitman seria reconhecido como um dos criadores da poesia moderna -o principal responsável pela canonização do verso livre e o introdutor (juntamente com Baudelaire) da temática urbana no lirismo.
É o impacto mundial desse poeta singular que "Walt Whitman & the World" pretende documentar. Entretanto o que mais impressiona o leitor dessa antologia de textos críticos e poéticos não é tanto a quantidade de tradutores que se debruçaram sobre os poemas de Whitman (50 apenas na Polônia), nem de poemas dirigidos a ele (assinados por Rubén Darío, Neruda, Borges e Pessoa, entre muitos outros), mas sim a diversidade de Whitmans que proliferaram nos diferentes idiomas e países onde as "Leaves of Grass" criaram raízes.
Para isso, muito terá contribuído a capacidade de se contradizer de que o próprio Whitman se vangloria ("Song of Myself", seção 50). Sua poesia possui uma grande variedade de atrativos para gostos os mais diversos: tiradas do romantismo mais descabelado e passagens de um naturalismo chocante, sutilezas esplêndidas capazes de empolgar o esteta mais exigente e banalidades altissonantes a que nenhum leitor (ou mesmo ouvinte analfabeto) poderia resistir. Tudo isso, aliado a uma figura que consegue ao mesmo tempo reunir autoridade viril e ternura feminina, só poderia mesmo resultar num fenômeno internacional. E Whitman, além (ou mesmo antes) de poeta, é isso mesmo: um fenômeno.
Para levantar a expansão desse fenômeno no mundo, Gay Wilson Allen e Ed Folsom congregaram whitmanistas de vários países. Cada estudioso contribuiu com um ensaio sobre a recepção de Whitman numa nação, seguido de uma breve antologia de textos críticos de diferentes épocas, incluindo recepção inicial e reavaliações posteriores, juntamente com poemas que tematizam Whitman ou se dirigem diretamente a ele. Dentro de um mesmo país, vamos encontrar leituras e reações as mais diversas; assim mesmo, porém, é possível arriscar algumas generalizações.
Na Grã-Bretanha e na Irlanda, onde seus textos foram lidos no original e portanto sua recepção foi mais imediata, Whitman foi repudiado pelo establishment conservador e louvado por todas as vozes dissonantes -desde intelectuais que se opunham à moral vitoriana, como D.H. Lawrence e Havelock Ellis, até trabalhadores e pequeno-burgueses ligados ao movimento trabalhista. Não faltaram observadores argutos do que havia de revolucionário na técnica poética de Whitman. Um dos mais argutos foi Gerard Manley Hopkins, ele próprio uma figura contraditória -ao mesmo tempo um renovador da poesia inglesa, tão radical quanto Whitman, e um tímido e pudico sacerdote católico. Comenta Hopkins, numa carta a Robert Bridges, que ele se assusta ao constatar que o poeta americano, "um grandíssimo patife", tem uma mente "mais semelhante à minha do que a de qualquer outro homem vivo".
Para o mundo hispânico -onde o primeiro whitmanólatra foi José Martí, escritor e mártir da independência cubana-, Whitman era acima de tudo uma figura heróica, misto de homem natural e apóstolo da democracia. No mundo de fala alemã, socialistas, anarquistas e "até mesmo nudistas" viam em Whitman principalmente um crítico da moderna sociedade capitalista; porém, observa Walter Grünzweig, "embora sua poesia fosse aplicada como terapia para os males da existência num mundo moderno, ela também acelerou o desenvolvimento de uma estética modernista". Na França, Whitman foi "oficialmente reconhecido e adotado" pelos simbolistas, que o tinham como precursor do movimento; foi traduzido, entre muitos outros, por Jules Laforgue. Já os intelectuais indianos descobriram afinidades incontestáveis entre Whitman e o Oriente: uns viam paralelos entre o "Baghavad Gita" e o "Song of Myself", enquanto outros encontravam no mesmo poema semelhanças profundas com o budismo. E, na China dos anos 30, em plena guerra contra os invasores nipônicos, Whitman era acima de tudo o poeta da defesa da pátria, o vate marcial de "Drum-taps".
Para o leitor brasileiro, são de particular interesse as seções dedicadas a Brasil e Portugal. Num ensaio de 1948, Gilberto Freyre ressalta a indissociação entre poeta, homem público e indivíduo em Whitman, que o aproximaria do homem ibérico. Freyre chega a comentar que uma passagem famosa de Whitman parece traduzida do espanhol ou do português: "Camerado, this is no book,/ Who touches this touches a man" ("Camarada, isto não é um livro,/ Quem toca nisto toca num homem"). Freyre vê também em Whitman uma figura "franciscana", com seu culto à simplicidade, seu "fraternalismo democrático" estendido a todos os homens.
O texto que representa Portugal, como não poderia deixar de ser, é a "Saudação a Walt Whitman", de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, cuja energia furiosa se destaca facilmente da maioria das outras homenagens poéticas incluídas no livro, marcadas por uma idealização um tanto sentimental do "good gray poet". Num breve texto introdutório, Susan M. Brown mostra de que modo Pessoa encontra, mediante a identificação com Whitman, uma solução personalíssima (sem trocadilho!) para a crise do sujeito do final do século passado. Segundo ela, Whitman teria sido o catalizador que tornou possível a noção pessoana de heteronímia e a subsequente explosão de sua obra. O que tornaria a nós, lusófonos, beneficiários particularmente privilegiados do fenômeno Whitman.
Paulo Henriques Britto é tradutor e poeta, autor de "Trovar Claro" (Companhia das Letras).

Folha de São Paulo

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