terça-feira, 28 de abril de 2009

Vontade de potência


Rosa Maria Dias

a publicação do ensaio de Wolfang Müller-Lauter é seguramente um acontecimento importante para leitores e estudiosos de Nietzsche. Como bem observa Scarlett Marton, na sua apresentação do livro, Müller-Lauter inaugura uma nova vertente interpretativa, distanciando-se de Martin Heidegger e Michel Foucault. Assim, os leitores do filósofo de "Genealogia da Moral", numa outra vereda e com um novo par de óculos (assim diz Marcel Proust), poderão seguir, passo a passo, linha a linha, através de uma investigação clara e rigorosa, a complexa problemática que envolve a afirmação: "O mundo seria vontade de potência e nada além disso".
No sentido de explicitar o que Nietzsche considera como vontade de potência (ou vontade de poder, como o termo é traduzido por Oswaldo Giacóia), Müller-Lauter inicia sua trajetória com uma questão de método: para se compreender o conceito de vontade de potência deve-se fazer uso das anotações de Nietzsche ou é preciso limitar a pesquisa apenas aos textos por ele publicados? Se o objetivo é entender as idéias daquele "que se compreendeu como o mais escondido de todos os ocultos" tudo é importante: o que anotou para si mesmo e o que publicou.
Deve-se fazer ressalvas apenas ao livro "Vontade de Potência", construído por Elizabeth Fõster-Nietzsche a partir de manuscritos de Nietzsche para uma obra futura. Foi apresentado como sua obra principal, mas na verdade somente em parte contribui para o esclarecimento do que Nietzsche entende por vontade de potência. Segundo Müller-Lauter, é questionável a escolha dos fragmentos póstumos que compõem tanto a primeira edição (1901) quanto a segunda (1906). Atualmente o leitor estudioso de Nietzsche pouco precisa desse livro para suas pesquisas, pode ter em mãos a edição crítica das obras de Nietzsche, organizada inicialmente por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, e hoje coordenada e dirigida por Müller-Lauter.
A questão filosófica que motiva a investigação de Müller-Lauter é a problemática da vontade de potência, inicialmente despertada, como ele mesmo revela, por indicação de Gilles Deleuze, mas elaborada para contrapor-se à interpretação de Heidegger. Este filósofo, nos dois volumes consagrados a Nietzsche, que reúnem os cursos de 1936 a 1940, assim como os desenvolvimentos anexos de 1940 a 1946, analisa o conceito de vontade de potência, inseparável, para ele, do conceito de eterno retorno do mesmo, nos "Fragmentos Póstumos" da edição canônica das obras de Nietzsche, e atribui à filosofia dele uma significação particular na história da metafísica -interpreta-a como momento de "completude da metafísica ocidental".
Ao efetuar a inversão da metafísica, Nietzsche teria esgotado todas as possibilidades de sua operacionalidade. Assim, para Heidegger, Nietzsche seria "o último grande metafísico". Ao fazer a inversão do platonismo, ao considerar como ilusório o mundo supra-sensível e ao pôr em evidência o mundo sensível, teria levado a metafísica até suas últimas consequências, mas caído na cilada da própria metafísica, sem poder dela se separar. A mera inversão do platonismo não lhe teria permitido ultrapassar a metafísica, concebida como ciência do ente, para aceder ao verdadeiro conhecimento do Ser. Com isso, Nietzsche pertenceria ainda a uma tradição que, por não fazer a pergunta pelo Ser, se encerraria na órbita do ser e do ente.
Para Müller-Lauter, Heidegger não faz justiça a Nietzsche, insistente crítico da metafísica, ao afirmar que sua filosofia pergunta pelo fundamento do ente no sentido da metafísica tradicional. Essa concepção de Heidegger poderia fazer algum sentido, segundo Müller-Lauter, quando Nietzsche pensa, por exemplo, a doutrina do eterno retorno como "extrema aproximação de um mundo do vir-a-ser com o do ser", mas esse aspecto não é para ser generalizado, já que todo o percurso de Nietzsche parece ter a intenção clara de provocar a dissolução da metafísica a partir dela mesma.
É importante notar que, embora a interpretação de Müller-Lauter contradiga a de Heidegger, em nenhum momento ele pretende excluir Nietzsche da história da metafísica, entendida por ele de modo mais abrangente e mais elevado, como sendo "o perguntar pelo ente em sua totalidade e enquanto tal", nem ser contrário a um esforço de Heidegger por um "ultrapassamento da metafísica tradicional". Segundo ele, todo o pensamento de Heidegger nessa direção foi impulsionado pela maneira de pensar do próprio Nietzsche.
A análise de Müller-Lauter do conceito de vontade de potência mostra, portanto, como por detrás da afirmação de Nietzsche, aparentemente tão simples, "o mundo é vontade de potência -e nada além disso", se encontra uma complexa problemática construída com o objetivo de demolir os pilares que sustentam a metafísica tradicional: "a unidade, a identidade, a duração, a substância, a causa, a coisidade e o ser".
Rosa Maria Dias é professora do departamento de filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e autora de "Nietzsche Educador" (Scipione) e "Nietzsche e a Música" (Imago).

Folha de São Paulo

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