terça-feira, 28 de abril de 2009

REVISTA INTERNACIONAL DE LIVROS - PIERRE BOURDIEU


Uma internacional intelectual

Ricardo Musse

A coletânea de artigos da "Revista Internacional de Livros" dirigida por Pierre Bourdieu, "Liber 1", é o primeiro livro, espera-se, de uma série organizada por Sergio Miceli. Uma alternativa simpática ao que seria o ideal -a criação de uma versão em português dessa revista que, coerente com o seu subtítulo, é publicada em francês, alemão, italiano, búlgaro, húngaro, sueco, romeno, grego, norueguês e turco.
Pierre Bourdieu define esse projeto como uma forma de resistência a uma situação de "ajuste intelectual" que -aproveitando-se do declínio da autonomia conquistada pelos universos da produção cultural ao preço de muitos séculos de luta contra os poderes temporais da Igreja, do Estado e do mercado- tenta sobrepor as normas do comércio ou do poder às normas próprias e específicas dos microcosmos do direito, da ciência, da arte, da literatura e da filosofia. Contra isso, propõe uma retomada do Iluminismo que passa pelo resgate da capacidade de aliar a autonomia da esfera intelectual com o engajamento crítico em um espaço público e político. Nesse sentido, redefine o modelo e a "missão" dos intelectuais. Em lugar do intelectual total à maneira de Sartre, ou do "intelectual específico" de Foucault, sugere o "intelectual coletivo", transdisciplinar e internacional como alternativa aos poderes econômicos, políticos e da mídia.
Miceli privilegiou em sua seleção três blocos temáticos. O primeiro, dedicado aos impasses da questão nacional, reproduz bem uma preocupação presente na origem da revista -como defender o internacionalismo em um registro diferente da imposição de um mesmo modelo pasteurizado pela hegemonia política, econômica e intelectual do neoliberalismo?
A isso se soma ainda o fato de que neste momento (1990) a utopia européia planejada em Maastricht se defrontava com uma realidade bem diversa: ampliação do número de países tidos como europeus pelo desmoronamento do império soviético; desproporção entre as potências hegemônicas com o fortalecimento territorial da Alemanha unificada; guerras e "revoluções", pela primeira vez desde 1945, localizadas no palco europeu; destruição gradual do Estado do bem-estar social etc. Diante desse cenário confuso, a solução encontrada, o exame caso a caso, o respeito às especificidades locais, impõe-se necessariamente.
Assim, soam igualmente pertinentes tanto, num extremo, o alerta de Jürgen Habermas contra os perigos da ressurreição do nacionalismo alemão pela via da recuperação política da obra de dois porta-vozes do Reich -Martin Heidegger e Carl Schmidt-, ou ainda a observação de Christophe Charle de que, mesmo hoje, a Alemanha continua a definir nacionalidade em termos étnicos; quanto, no pólo oposto, a defesa de uma política cultural local, a partir do incentivo a uma retomada do idioma irlandês, por Gerry Adams, porta-voz do Sinn Fein -dito pela nossa imprensa "braço político" do IRA- que define o nacionalismo pluralista de seu partido como componente necessário da luta anticolonial e, portanto, como avesso aos racismos produzidos pelo sentimento de pertencer a uma "raça de senhores". Em posição intermediária, um dossiê sobre a retomada do nacionalismo -outro resultado do colapso da Grã-Bretanha-, principalmente literário na Escócia e um artigo sobre o patriotismo não nacionalista despertado entre os intelectuais italianos em oposição aos slogans e à política da coalizão Liga Norte, MSI e "Forza Italia".
O segundo bloco, "mestres do pensamento", contém artigos sobre e entrevistas com importantes e influentes sociólogos e historiadores. A maioria dos artigos procura esclarecer posicionamentos políticos às vezes sujeitos a controvérsias, às vezes pouco documentados, ressaltando o engajamento intelectual. Marcel Fournier resgata a oposição entre socialismo e bolchevismo feita por Marcel Mauss nos anos 20. O historiador e socialista inglês E. P. Thompson concede uma singela e profunda entrevista acompanhada de um perfil pessoal e político, feito por ocasião da sua morte, por Huw Beynon. Didier Eribon defende, citando documentos inéditos, Georges Dumézil da acusação de simpatia velada ao nazismo levantada por Arnaldo Momigliano e Carlo Ginzburg. Por fim, Miha‹ D. Gheorghiu comenta uma série de cartas que revelam as posições políticas, visceralmente antifascistas, de Eugène Ionesco na década de 40. Completa o bloco um artigo bastante elucidativo de Maria Luisa Pesante acerca da reviravolta linguística na historiografia do pós-guerra que se detém particularmente no relato das posições conflitantes de Hayden White e Reinhart Koselleck.
O último bloco, deliberadamente polêmico, trata de arte e literatura levando em conta suas relações de aproximação e afastamento frente à indústria cultural. A adesão dos intelectuais franceses aos padrões instaurados pela mídia, como não poderia deixar de ser, é tematizada em dois artigos, um deles um delicioso e irônico relato de um colóquio parisiense, dando razão à advertência de Habermas: "O tema do fim das Luzes é atualmente -ironia do destino- mais francês que alemão". Pascale Casanova critica a literatura feita pela "internacional universitária" -Umberto Eco, Franco Ferrucci, Milorad Pávitch e David Lodge. Valendo-se de seus conhecimentos da estrutura literária, esses autores, acadêmicos neo-estruturalistas, usam o repertório de recursos literários para produzir obras conformistas, calculadamente "desnacionalizadas" para agradar uma audiência global. Em outro artigo, a mesma Pascale combate a tentativa da crítica literária e da mídia de agrupar em uma mesma etiqueta, "World Fiction", escritores tão diversos como os emigrantes adaptados Kazuo Ishiguro, "sir" V. S. Naipul e verdadeiros apátridas como o srilanquês Michael Ondaatje, que vive no Canadá, e o indiano do Paquistão, Salman Rushdie, que "reside" na Inglaterra. Três artigos sobre arte contrapõem, de um lado, a reprodução irrefletida dos mecanismos que fortalecem a invisível autoridade exercida pelo mundo dos negócios sobre a cultura pela Documenta de Kassel e, por outro, o trabalho artístico de Hans Haacke que incorpora na própria obra de arte a crítica a esses mecanismos.
Ricardo Musse é professor de filosofia na Unesp (Universidade Estadual Paulista).

Folha de São Paulo

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