terça-feira, 28 de abril de 2009

OS PODERES DA PALAVRA


O que é Freud e o que é Lacan

Renato Mezan
PSICANÁLISE-LACAN ELUCIDADO: PALESTRAS NO BRASIL

Em meio à abundância das publicações psicanalíticas recentes, os dois livros acima chamam a atenção de quem se interessa pelo pensamento lacaniano.
"Os Poderes da Palavra" é organizado de modo original: cinco associações de países diferentes (Argentina, Brasil, França, Venezuela e a internacional "École Européenne de Psychanalyse") prepararam, cada uma, um texto a diversas mãos sobre o tema da interpretação: estes cinco relatórios formam então o volume. Os argentinos estudaram "A Interpretação em Freud"; os venezuelanos, a leitura feita por Lacan de três casos de Freud; os "europeus", a interpretação depois de Freud (Melanie Klein, a psicologia americana do ego, Reich, Kohut, a escola inglesa das relações de objeto etc.); os franceses, a "Problemática Atual da Interpretação", e os brasileiros, "O Escrito e sua Interpretação em Psicanálise".
O resultado é bastante bom. Além de enorme quantidade de informações sobre a história das idéias e das práticas psicanalíticas, o leitor encontrará expostos com clareza, e às vezes com verve, os princípios da interpretação lacaniana. Eles são aplicados às histórias de caso publicadas por Freud, e igualmente a textos que se originam nas demais correntes da psicanálise, tanto francesas -pois nem todo analista francês é lacaniano- quanto anglo-saxãs. O capítulo assinado pelos brasileiros resgata a tão denegrida "psicanálise aplicada" (embora Lacan não gostasse do termo, é disso mesmo que se trata), mostrando que também se pode aprender psicanálise estudando personagens de ficção e textos biográficos; os instrumentos da análise são os mesmos que nos casos ditos "clínicos", e aqui se pode ver como funcionam os conceitos metapsicológicos de corte lacaniano.
Naturalmente, o tom em que se comentam os textos psicanalíticos não-lacanianos varia segundo o objeto escolhido: ácido em relação aos adversários de língua inglesa (uma das seções do capítulo da "École Européenne de Psychanalyse" se intitula "A Interpretação Pervertida"), ligeiramente irônico em relação a Melanie Klein (por exemplo, em "Uma Intérprete Que Sabe"), e razoavelmente atormentado quando focaliza Freud. Os princípios lacanianos conduzem a uma prática muito diferente da clássica: mas, sendo produto de uma releitura de Freud, têm como origem última o pensamento do fundador, aos quais pretendem ser mais fiéis do que o próprio Freud. Razão para embaraço, quando se retorna aos casos nos quais ele o aplicou e desenvolveu!
Estas verdadeiras supervisões post-mortem são, porém, uma bem-vinda ocasião para que o leitor perceba como raciocina o analista lacaniano, o que lhe chama a atenção, como formula sua interpretação e o que espera dela. Um exemplo ilustra a importância de reconhecer o momento apropriado para intervir (o timing dos analistas tradicionais): "Se no caso Dora a interpretação chegou tarde demais, no caso da Jovem Homossexual ela chegou muito cedo". E por que Freud cometeu estes erros? "A interpretação precoce no caso da Jovem Homossexual é associada sucessivamente por Lacan à confusão entre os registros imaginário e simbólico da transferência, à confusão da intenção do desejo da contratransferência (sic) e ao desconhecimento do objeto 'a'.". Mas Lacan (e depois dele os discípulos que assinam o texto) não deixa de "retomar as descobertas de Freud, a fim de elaborar a posição freudiana da interpretação". Eis o paradoxo deste tipo de leitura: esperaríamos encontrar, no texto citado, a formulação "elaborar a posição lacaniana da interpretação", isto é, reconhecer que, a partir de Freud, é possível avançar na conceituação e na prática da interpretação etc. etc. Que se há de fazer? Espinosa já o notara: "O que Pedro diz sobre Paulo nos diz mais sobre Pedro do que sobre Paulo"...
É justamente o reconhecimento da distância entre Freud e Lacan que torna interessante o livro de Jacques-Alain Miller. Este volume de mais de 600 páginas reúne conferências e seminários realizados nas oito visitas do professor francês ao nosso país, mais espaçadas nos anos 80, praticamente anuais a partir de 1991: sinal da importância que adquiriu, para a Internacional lacaniana, a sua seção brasileira (ou, segundo línguas mais trífidas, a importância que adquiriu para o império lacaniano a sua província brasileira...).
Em todo caso, Miller é um excelente expositor do pensamento de seu mestre e sogro: seus comentários pressupõem alguma familiaridade com o original (o que é bom: não têm a pretensão de o substituir), são realmente elucidativos, justificando o título um tanto pomposo do volume (que faz pensar em coisas como "a Cabala desvendada" ou "o latim ao alcance de todos").
Além da indiscutível vantagem que consiste em poder acompanhar a construção de um pensamento riquíssimo, com seus meandros, impasses e reviravoltas, o leitor encontrará aqui, como disse, algo raro entre os lacanianos: uma reflexão sobre o que é de Lacan e sobre o que é de Freud. Destaco alguns trechos das conferências de Salvador (1991), na seção "O Desejo de Lacan": "O retorno a Freud, realizado por Lacan, não se limita apenas à formalização dos conceitos freudianos, mas inclui também uma interrogação do desejo de Freud". "Não podemos desconhecer que Lacan, desde sua entrada na Psicanálise, elegeu outros autores para ler Freud. É algo constante em sua obra trabalhar sobre a obra freudiana através de leituras exteriores" (Hegel, Kojève, Saussure, Lévi-Strauss e outros). Miller, espantando-se de que o então jovem lobo não tenha ido visitar Freud, a exemplo de todos os outros analistas franceses, quanto este passou uma tarde em Paris a caminho de seu exílio londrino, chega a falar num "desejo de não se deixar capturar por Freud". O próprio Lacan teria assim definido sua posição complexa frente ao fundador da psicanálise: "Uma relação de transferência negativa".
O interesse deste ponto é mais do que puramente anedótico ou biográfico, porque oferece uma pista para ler Lacan a partir de seus próprios problemas, que nem sempre são os de Freud -embora sempre encontrem estes últimos em algum ponto do seu encaminhamento. Razão a mais para recomendar a leitura deste livro, que, como o anterior, representa uma verdadeira contribuição aos estudos psicanalíticos, especialmente aos que visam a história e a epistemologia da nossa disciplina.
RENATO MEZAN é autor de "Figuras da Teoria Psicanalítica" (Escuta/EDUSP) e "Psicanálise e Judaísmo: Ressonâncias" (Imago), entre outros.

Folha de São Paulo

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