terça-feira, 28 de abril de 2009

O carrossel de Buzzati


Nilson Moulin

Em primeiro lugar, o que costuma merecer não mais que um último parágrafo: a tradução de Ana Maria Carlos é fluentemente linda. Linda tanto em nossa acepção de beleza quanto na italiana, significando um texto limpo, escorreito, como requer a psicologia e o estilo de mais esse "nobiluomo" que se dedicou profissionalmente às letras.
Dino Buzzati Traverso (Belluno, 1906 - Milão, 1972) foi jornalista, pintor, crítico de arte. Publicou o romance "Bàrnabo delle Montagne" em 1933 e, a partir daí, prolífico e mimado como era, encontrou sempre portas abertas para seguir escrevendo. Até mesmo sob a censura nazi-fascista: e sem aderir aos credos então dominantes. Totalizou 5 romances, 12 peças de teatro, 5 libretos para ópera e inúmeras coletâneas de contos, crônicas e poesias.
Contudo, durante bastante tempo, a recepção da crítica italiana não lhe foi muito favorável. Ao contrário, já na década de 50, na França, passou a ser acolhido como grande autor: Albert Camus traduziu diversos de seus textos. Os conterrâneos de Buzzati sublinham o caráter "nórdico", "gótico", enfim, "pouco italiano" da escrita desse friulano/milanês. Compará-lo a Kafka ou a Svevo não ajuda muito a entender um certo rechaço de seus compatriotas. Suas produções logram passar ao largo da maioria dos "ismos" que dominaram a cena literária da Itália e da Europa a partir da década de 30. Talvez por isso tantos críticos, sem conseguir enquadrá-lo com a camisa de força das correntes hegemônicas, acabassem por situá-lo em algum não-lugar. A amizade com Yves "azul" Klein, pintor promovido pelo crítico de arte Buzzati, determinadas ambientações e andamentos narrativos que fazem pensar em Paul Delvaux e em Magritte não bastam para classificá-lo como surrealista. "Realismo mágico", insistem outros: mais do que uma análise, faz pensar em reducionismos resultantes de leituras superficiais e fragmentárias. Todavia por que o festejado autor de "O Deserto dos Tártaros" seria tão "pouco italiano"?
Se atentarmos para o campo semântico de vários contos dessa antologia que circula com o título de "Il Crollo della Baliverna" (1957), talvez encontremos elementos que permitam evitar classificações apressadas.
Aviso de ruína, ruínas mortas, um homem arruinado, incapaz de esperanças, tocar o fundo, viver o vácuo, culpas abjetas, recaída, semanas devoradas, o tempo recomeça a esmagar, avalanche, aqui para minha ruína, lobotomia escolar, decrepitude, pesadelo, impotência, linchamento, morte: tudo isso é repetido e matizado em diferentes contextos, sem provocar náuseas nem o abandono da leitura. Por vezes, há um contraponto de montanhas brancas e puras, permeado sempre por muita ironia. Mas um conjunto similar seria mesmo "pouco italiano"? Se pensarmos na "angústia descritiva" do Manganelli da "Hilarotragoedia" talvez já tenhamos um nicho não-canônico a ser pesquisado...
Numa entrevista em que comentava seus "catálogos de ironias e sátiras", Buzzati reconhecia como mestres Pascal, Wilde e Poe. Mas um tal esboço de genealogia não basta para desqualificá-lo como "não italiano"...
Por outro lado, Domenico Porzio destaca como fundamental para captar as nuances dos refinados textos de Buzzati "o susto que emana de uma mínima e admoestadora ruptura da norma". Podemos constatá-lo em diversos contos desta intrigante "A Queda da Baliverna". Se somarmos a isso referências implícitas ao Sêneca de "Sobre a Brevidade da Vida", teríamos uma moldura mais flexível para ler Buzzati e, junto com ele, encarar nossa existência enquanto marcha inexorável para o nada, um dos temas recorrentes da obra em pauta. Eis um exemplo de variação temática: em "O Homem que Quis Sarar", vamos dialogar com Mseridon e Giacomo, patriarca de uma comunidade de leprosos. Este último "tinha pelo menos 110 anos e há quase um século a lepra o vinha corroendo".
Mseridon, o soberbo, teve a pretensão de sarar para poder sair do leprosário: sua cura, seguida de uma reviravolta desconcertante, provoca imensa alegria entre os doentes, que festejam a permanência de um companheiro no trabalho de espera. Aliás, o verbo "esperar" (não só a grande ceifadora) é uma das chaves para melhor captar as engrenagens do universo buzzatiano e a atualidade de personagens como Drogo/Dorigo.
O bestiário deste belo livro inclui: ratos escravocratas, vermes, aranhas gigantescas, homens feito larvas, corvos, porcos, Ubu Murru-gênio do mal, um cão que viu Deus, um gato de Deus, Giorgio-menino tirano e mais fauna que nos é estranhamente familiar. Quando o autor movimenta seu carrossel, alternando tais bestas como protagonistas, o absurdo, a ironia e o sarcasmo se misturam adquirindo um clima de cotidiano vivenciado, sem jamais resvalar para a banalidade. Uma bomba de hidrogênio entregue a domicílio ou uma gripe de Estado, "que ataca somente os pessimistas, os incrédulos, os opositores, os inimigos da pátria escondidos em todos os cantos...", tudo se faz realidade quase palpável, leitura de mídia deste ano de 1997, graças às artes do narrador.
Cerca de 40 anos de jornalismo, cobrindo o colonialismo mussoliniano na África, a Bienal de Artes de São Paulo (1969), naufrágio de crianças, catástrofes temperadas com fartura de sangue, conferem a Buzzati uma fantástica mestria narrativa. Ele é um autor capaz de conquistar leitores com um simples conto de três páginas. Mas quem se dispuser a ler vários deles certamente passará a dedicar-lhe um lugar especial na estante. Já publicados pela Nova Fronteira: "O Deserto dos Tártaros" (edição italiana de 1940), "Um Amor" (1963), "Naquele Exato Momento" (1955) e "As Noites Difíceis" (1971). A Companhia das Letras só dispõe de um título em catálogo: "As Montanhas São Proibidas" (1949).
Por fim, uma reavaliação recente de parte da crítica italiana: além de "O Deserto dos Tártaros" e de alguns contos breves, passou-se a considerar como obra-prima também "La Famosa Invasione degli Orsi in Sicilia" (1945), fascinante livro infantil ilustrado pelo próprio autor. Quem vai revelar esta outra dimensão buzzatiana ao leitor brasileiro?
E ainda, um problema editorial: a omissão do nome da tradutora, nesta edição da Nova Alexandria, constitui uma ironia à Buzzati ou não passa de um enésimo abuso contra os co-autores que somos e que nossos editores insistem em negar?

Nilson Moulin é tradutor.

Folha de São Paulo

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