terça-feira, 28 de abril de 2009

A lógica do preferível


Angélica Chiappetta

Chaim Perelman é, muitas vezes, considerado um dos principais responsáveis pelo renascimento da retórica ou, como ele mesmo afirma, pelo estabelecimento de uma Nova Retórica. Se a retórica pôde renascer, ou se uma Nova Retórica pôde ser estabelecida, é porque desde aproximadamente o final do século 18 o termo "retórica" passou a indicar o discurso vazio que procura substituir com expedientes medíocres a falta de idéias. A retomada pode ligá-la ao raciocínio, terreno onde tem que se defender da lógica, ou às figuras de estilo, onde disputa com a poética, mas, nos dois terrenos, destaca-se a linguagem como realidade comum.
Pode-se passar da retórica como raciocínio não formal à retórica como inferência de um sentido dito figurado e daí para o reconhecimento das intenções do orador como critério de sentido além do literal. Tais deslizamentos e sobreposições são parte do campo retórico e ajudam a defini-lo.
Assim, o plural, "Retóricas", no título do livro de Perelman, é oportuno em vários sentidos. Trata-se de uma coletânea de artigos e conferências anteriormente publicados e agora (a primeira edição belga é de 1989) agrupados em quatro grandes temas. A primeira parte, "A Linguagem: Pragmática e Dialógica", lembra que, apesar da diferença de significados atribuídos ao termo "dialética", este sempre pressupõe um juiz ou alguma instância de julgamento, externa e prévia, que garanta a verdade das proposições.
A dialética platônica faz aparecer um saber que assenta numa realidade estável, feita de verdades preestabelecidas e imutáveis, as Idéias, que são apenas reveladas pelo diálogo que as pressupõe. Perelman, retomando noções aristotélicas, reforça a participação do interlocutor: o ponto inicial de uma argumentação dialética não consiste em proposições necessárias, válidas em toda parte e sempre, mas sim em proposições efetivamente aceitas em dado meio e válidas só nesse meio.
A segunda parte, "Lógica ou Retórica?", segue criticando as noções de univocidade pretendidas pela filosofia platônica que, separando convicção de persuasão, impõe um ideal de rigor que confunde progressivamente a lógica e a lógica formal. Para que uma mensagem seja formalmente analisada é preciso reduzi-la à univocidade, mas o próprio formalismo só é "evidente" por convenções de aceitação. Qualquer linguagem, mesmo formal, dirige-se a alguém e, se pode convencer a todos, sendo formal, é por não agredir ninguém com um conteúdo que questiona este ou aquele valor. A Nova Retórica, opondo-se a tal platonismo, é "o estudo dos meios de argumentação, não pertencentes à lógica formal, que permitem obter ou aumentar a adesão de outrem às teses que se lhe propõem ao assentimento". Seu cuidado primordial é o do lógico às voltas com o real social.
Na terceira parte da coletânea, "Filosofia e Argumentação, Filosofia da Argumentação", Perelman faz uma distinção entre o que chama de "filosofias primeiras" e uma proposta "filosofia regressiva". As filosofias primeiras, dogmáticas, fundam-se numa metafísica que determina os princípios absolutamente primeiros e empenham-se em provar que esses constituem a condição de qualquer problemática filosófica. A filosofia regressiva, por outro lado, lida com princípios que, em vez de serem iluminados por alguma intuição que preceda os fatos e seja independente deles, são esclarecidos pelos fatos que permitem coordenar e explicar.
Os princípios regressivos são como que efeitos de suas consequências. Essa filosofia, Perelman avizinha da retórica antiga de Aristóteles, e principalmente da parte de sua "retórica" relacionada à "tópica". No entanto, afirma que a meta de sua Nova Retórica, ou sua "lógica do preferível", é mais limitada que a da retórica aristotélica, pois não se interessa por todos os fatores que influenciam o assentimento, mas apenas pelas "argumentações pelas quais somos convidados a aderir a uma opinião e não a outra". Segundo Perelman, argumenta-se para conseguir a adesão de um auditório que, no caso do filósofo, é o "auditório universal", abstração, idealizada pelo orador, que regula os problemas relativos à eficácia da retórica. A argumentação racional deve pretender à universalidade expressa por esse auditório, histórica e socialmente determinado, situado num meio de cultura e variando com este.
Na última parte, "Teoria do Conhecimento", Perelman faz referência à sociologia do conhecimento, "ciência da determinação do saber e do conhecer pela existência social". Sem considerar a constituição histórica e social do auditório, a teoria do conhecimento, ligada às ciências formais, segue a concepção cartesiana que diz ser a ciência constituída por verdades evidentes, que não variam e não dependem da figura do pesquisador. No entanto, lembra Perelman, mesmo as ciências tiveram um desenvolvimento argumentativo e muitas razões que fundamentam as decisões dos cientistas são opiniões consideradas prováveis e elaboradas graças a raciocínios que não se prendem à evidência nem à lógica analítica. Uma teoria da argumentação poderia auxiliar o exame dos limites do cartesianismo e propor procedimentos para ultrapassá-los.
Tendo sido apontado como um valorizador e quase salvador da retórica, Perelman foi também, muitas vezes, acusado de trair a causa.
A. Plebe e P. Emanuele fazem severas objeções ao fato de ele ter reduzido a retórica antiga a uma parte da "invenção" e de apresentar um Aristóteles "com o propósito enganoso de identificar a retórica com a dialética"(1). B. Cassin afirma que o projeto de Perelman é platônico e tenta satisfazer o "Fedro" graças à "Retórica" de Aristóteles, apropriada, assim, como a "boa retórica"(2). Segundo a autora, o "auditório universal" de Perelman coloca o problema do valor da retórica no campo das intenções, enquanto esse só poder ser retoricamente discutido no campo dos efeitos. M. Meyer diz que a Nova Retórica ainda está restrita ao campo da proposição como suporte mínimo da verdade, quando talvez se devesse passar para o campo dos problemas e das questões, campo em que a retórica seria "a negociação da distância entre os homens a propósito de uma questão, de um problema"(3). De qualquer forma, Perelman deixa claro que se apropria da retórica aristotélica com o interesse do lógico insatisfeito com as restrições que o cartesianismo tem imposto aos raciocínios.
NOTAS:
1. "Manual de Retórica", de Armando Plebe e Pietro Emanuele, Martins Fontes, 1992.
2. "Bonnes et Mauvaises Rhétoriques - De Platon à Perelman", de Barbara Cassin, in "Figures et Conflits Rhétoriques", org. por Michel Meyer e Alain Lempereuer, Université de Bruxelles, 1990.
3. "As Bases da Retórica", de Michel Meyer, in "Retórica e Comunicação", org. por Manuel Maria Carrilho, Asa, 1994.
Angélica Chiappetta é professora de língua e literatura latina da USP.

Folha de São Paulo

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