segunda-feira, 6 de abril de 2009

FURACÃO DA BOTOCÚNDIA


Um militante do livro

Carlos Gulherme Mota
A primeira vítima da televisão vai ser a velha e boa Saudade, que no fundo é filha da lentidão e da Falta de Transportes. A Saudade desaparecerá do mundo." (Nova York, 1928)
Ao encerrar-se o século 20, é tempo de indagar sobre os caminhos que a vida intelectual tomou neste país. Um século fecundo em projetos, diretrizes, plataformas, novos rumos, desconstruções, utopias, pos-modernidades. Mas o que fica? Fica muito, ficam as idéias de Euclides, dos Freyres, dos Sérgios, dos Andrades, de Guimarães, dos Prados e Veríssimos, as marinhas do Pancetti e muito mais. Mas fica também a obra de Monteiro Lobato, que atravessou esse tempo todo, indo para os livros, editoras, jornais, revistas, cinema (Lobato fala disso já em 1919) e depois para a TV.
Nos EUA, Lobato se impressionaria com o advento da TV, tecendo comentários que o situam no pensamento de vanguarda de seu tempo. Quem mais, além dele? Hoje, quando parece esboçar-se, em tempos de globalização, uma desencontrada civilização que busca sua verdade (tropical), vale reler este inovador, para verificar-se quão pouco inovamos, e ainda temos a percorrer na construção de uma cultura.
Em "Furacão na Botocúndia", desenha-se mais nitidamente a presença do escritor na cena brasileira. Nascido em 1882 em Taubaté, sua trajetória pessoal e sua obra são acompanhadas até a morte em 1948 no apartamento cedido por Caio Prado Júnior, no último andar do prédio da Editora Brasiliense. Após tantos estudos sobre a "Belle Époque" no Brasil e nossas tímidas vanguardas, este livro bem pesquisado e inspirado traz uma revisão importante. Ou melhor: correção. Lobato não era tão antimoderno como virou moda dizer-se. Ao contrário, ao iluminar nossa história intelectual, política e empresarial da primeira metade do século 20, "Furacão" provoca uma rotação de perspectivas, abrindo novas hipóteses para estudos sobre o nacionalismo, o papel dos intelectuais, a vida editorial, as relações com os EUA, a "identidade cultural brasileira", os livros para crianças, o impacto de inovações tecnológicas e a dimensão cultural do capitalismo e do Estado em nosso meio. Sobre choques de mentalidades, enfim.
Os autores aceitaram o desafio de escrever uma biografia de Lobato que fosse além da produzida por Edgard Cavalheiro, em dois volumes, clássica. E conseguiram. "Furacão na Botocúndia" é pertinentemente bem ilustrado e bem escrito, com excelentes notas biobibliográficas e índices, além de revelar novos aspectos da época e de sua vida intensa. Perscrutam seu modo de ser, sua imagem pública, levando o leitor a constatar que o fato de comportar-se como um iracundo, mal-humorado, ranheta mesmo, se devia à inconformidade com o "mores" e com o atraso de seu país. Lobato irritava-se com aqueles que viviam no "Brasil maravilha", marcados pela "descuriosidade" em conhecer dados básicos de nossa formação. Isso o estimula a traduzir e editar textos, como os de Hans Staden e Jean de Léry, no mesmo impulso que o leva a participar da criação de editoras, como Monteiro Lobato & Cia. e logo depois a Companhia Editora Nacional (1926), com Octalles Marcondes Ferreira. A Nacional seria uma referência, com suas coleções, traduções e "bibliotecas universitárias" que agregariam nomes como os de Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira e, depois, Florestan Fernandes. Militante do livro, escrevia em 1926 ao recém-eleito presidente Washington Luís, pedindo providências contra a "guerra fiscal contra a cultura": "Não há cultura possível sem livro e livro barato, livro que penetre nas massas populares e lhes erga o nível mental. Que nos vale ter picos como Rui Barbosa, se a planície apresenta um dos mais baixos níveis culturais do mundo?".
No ano seguinte Lobato se transferia para Nova York, como adido comercial, tornando-se admirador de Henry Ford e Mencken, leitor do "New York Times"... O traçado da modernidade já não passava apenas pelas letras e pelo prestígio estamental, mas também por uma concepção empresarial da cultura. E nesse sentido suas experiências nos EUA seriam da maior importância, inclusive a convivência com Anísio.
Os autores mostram seus encontros e desencontros com os modernistas de 22, e depois com o Estado Novo e com o Conselho Nacional de Petróleo, acusando este de agir a favor dos "interesses do imperialismo da Standard Oil e da Royal Dutch, perpetuando a nossa situação de colônia econômica dos trustes internacionais", o que provoca a ira do general Horta Barbosa, um dos dirigentes do regime, que o levaria à cadeia.
Tecendo a trama que ligava escritores e editores, grupos de opinião e tendências políticas e empresariais, "Furacão na Botocúndia" fixa o painel cultural de uma época decisiva na constituição de um mercado e de um sistema cultural. Quando do Primeiro Congresso dos Escritores em 1945, Lobato é aclamado por seus pares, consolidando a imagem do intelectual público. Entende-se assim que Lobato, associado a Octalles, tenha editado passadistas como Vicente de Carvalho, mas ao mesmo tempo livros como "Máscaras", de Menotti del Picchia, e "Nós", de Guilherme de Almeida. Sua vida se misturava com a das vanguardas, tendo mesmo frequentado a "garçonnière" de Oswald -onde "o homem do dia" esqueceria as provas de seus "Urupês" sobre o sofá... Mais: Lobato deu toda força à publicação da obra de Lima Barreto.
Ao percorrer estas páginas, vamos descobrindo gradativamente um Lobato nada cinzento. E, como escreve José Mindlin na "Apresentação", tendo surpresas inesperadas, que reaquecem uma admiração que já não se mantinha com a mesma intensidade de antes. Esta parece ser a intenção dos autores, pois as imagens "conversam" com o texto, com as legendas e com as cronologias inteligentes desde o início, no esforço de aproximar-nos do personagem. Como se não bastasse, ao mesmo tempo em que restituem Lobato ao seu tempo histórico, "conversam" também com o nosso, sem anacronismos, porém com firme propósito de aproximações, notando permanências dos mesmos problemas.
Não por acaso abrem o livro com um comentário sobre Lobato feito por Alberto Conte ("É simpaticíssimo"). Depoimento seguido de uma mini-autobiografia irônica, em terceira pessoa, acompanhada de uma autofoto em Rolleyflex, já na maturidade: "Mudou de classe. Passou ao paraíso dos intermediários. Começou editando a si próprio e acabou editando aos outros. Escreveu umas tantas lorotas que se vendem -"Urupês", gênero de grande saída, "Cidades Mortas", "Idéias de Jeca Tatu," subprodutos, "Problema Vital", "Negrinha", "Narizinho". Pretende publicar ainda um romance sensacional que começa por um tiro:
-Pum! E o infame cai redondamente morto... Nesse romance introduzirá uma novidade de grande alcance, qual seja, a de suprimir todos os pedaços que o leitor pula" (1921).
Observe-se que, antes da Semana de Arte Moderna, essa auto-ironização não era desprezível, como não é desprezível o fato de Monteiro Lobato ter editado obras de Oswald de Andrade e outros, além de abrir para o público brasileiro um vasto leque de autores norte-americanos e europeus em suas inúmeras traduções. Essa atividade febril de grande divulgador de outros autores que formariam gerações seria criticada mais de uma vez, dada a quantidade e a variedade da produção, levantando-se mesmo suspeita quanto à autoria.
Não se tratava apenas de um excesso de energia, mas de um novo conceito de cultura, menos paulopradeanamente nostálgico e aristocrático, mais militante e ativo. Conceito aliás presente em outros intelectuais de seu tempo, como o último Mario de Andrade, ou mais jovens, como Caio e Drummond. Ou Florestan, que, preocupado com a "ação prática", cobriu para a "Folha da Manhã" o Primeiro Congresso de Escritores em 1945.
Carlos Guilherme Mota é historiador e autor, entre outros livros, de "Ideologia da Cultura Brasileira" (Ática)

Folha de São Paulo

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