sábado, 25 de abril de 2009

FOTOGRAFIA E CIDADE - DA RAZÃO URBANA À LÓGICA DO CONSUMO DE ÁLBUNS DE SÃO PAULO



Um olho atrás do visor
Victor Knoll
SOLANGE FERRAZ DE LIMA; VÂNIA CARNEIRO DE CARVALHO

a produção fotográfica de Militão Augusto de Azevedo -um álbum da cidade de São Paulo com registros de 1862 a 1887- e imagens colhidas durante o 4º Centenário são as demarcações das análises e descrições empreendidas em "Fotografia e Cidade". Dentro deste segmento histórico privilegiaram-se os estudos dos álbuns produzidos nos períodos de 1887-1919 e 1951-1954.
O trabalho traz à tona a questão da colocação da obra de arte como documento ou fonte da pesquisa histórica. As autoras advertem que se recusam a ver o repertório de imagens que elegeram como mero espelho da paisagem urbana. Querem ler os significados que as imagens escondem ou o impacto da realidade que outras apresentam. Mas é forçoso reconhecer que a referência é uma propriedade da fotografia. Apesar das leituras que se podem fazer de uma fotografia, em primeiro lugar impõe-se o reconhecimento de que se trata de uma imagem "de tal lugar".
Aliás, a referência não é prerrogativa da fotografia. Também a pintura mantém um compromisso com o reconhecimento de que suas representações remetem a um objeto exterior. A tradição do retrato e da paisagem assim o atesta. Nos últimos anos do século 15 um pintor anônimo compôs um quadro sobre a execução de Savonarola que "põe diante de nossos olhos" a cidade de Florença. Ao analisar ou descrever esta tela podemos descobrir muitas significações, mas, em primeiro lugar, realizamos que "estamos vendo" a Piazza della Signoria.
Do mesmo modo, qualquer coleção de fotos que mostre logradouros ou edifícios de uma cidade e a presença de seus habitantes tem certamente na referência o seu polo mais forte, embora se possam descobrir significados latentes ou alguma verdade que a imagem esconda. De resto, o referente, por si, tanto na foto como na pintura, é já uma poderosa fonte de significações. Observe-se, ainda, que o uso da fotografia como documento tem precisamente na referência a sua grande justificação. Este ponto se impõe com maior força quando a coleção de fotos é constituída por imagens tomadas do mesmo objeto em épocas distintas. Quando duas fotografias são da mesma rua, do mesmo ponto de vista, tomadas em momentos diferentes com uma lente de mesma distância focal, o interesse pelo referente nos ocupa de imediato. Empolga-nos "ver" no referente as transformações, o trabalho do tempo, as diferenças vividas por seus habitantes.
Entretanto, conforme já indicamos, as autoras lidam com dois grandes repertórios. No primeiro (1887-1919) têm maior presença as obras comparativas -o álbum de Militão e outro organizado por Washington Luiz; no segundo destacam-se os "álbuns contemporâneos", "aqueles que retratam os motivos na sua atualidade". As comemorações do 4º Centenário de São Paulo propiciaram álbuns desse tipo, que foram confeccionados ao longo da primeira metade dos anos 50. As fotos denotam a intenção de ostentar o progresso da capital paulista, o gigantismo da cidade, a explosão demográfica, a geração de riqueza -o que, aliás, é de contundente obviedade. Além disso, tendo em vista as festividades do centenário, não poderia ser outro o seu teor. Aqui, cabe antes uma "sociologia" da comemoração que da imagem.
Sem dúvida, a motivação das duas séries é documentar a cidade, mas não se pode desconhecer que foram feitas também com propósito artístico. Esta "vontade de arte" não pode passar desapercebida pela análise ou interpretação, mesmo quando a imagem fotográfica tenha prioritariamente um interesse de documento. Embora realizadas de modo despreocupado, o passar do tempo exerce um misterioso efeito sobre a recepção das fotografias -passam a ser vistas com a aura das obras de arte.
Entretanto, este lado da produção fotográfica não interessou às conclusões das autoras. Extraem do longo itinerário analítico percorrido que as fotografias -aquelas produzidas no início dos anos 50- mascaram a especulação imobiliária quando mostram a fachada de edifícios ou casas em construção e, inversamente, desnudam a realidade -isto é, a condição dos oprimidos pela violência do capital-, quando exibem um engraxate em atividade ou uma mulher pela rua com uma trouxa na cabeça. Lidam com um mero esquema. A riqueza das significações que está em jogo nas imagens sofre um reducionismo que redunda no simplismo. Quanto às implicações ideológicas enraizadas nas cidades -e consequentemente nas imagens fotográficas que delas se fizer, por força de seu alto poder de referência- já Argan as expôs em "História da Arte Como História da Cidade" e especialmente no capítulo "Cidade Ideal e Cidade Real".
Parece não ser impróprio transpor para o gênero ensaio a exigência que Aristóteles fez para a tragédia: "É pois evidente que também os desenlaces (as conclusões) devem resultar da própria estrutura do mito (da argumentação, da análise, da interpretação dos dados), e não do 'deus ex machina'±". As conclusões não podem ter um caráter artifical ou artificioso. Não cabe atribuir às análises das fotografias o que de antemão já se tem por certo. Do mesmo modo, não é preciso analisar fotos dos anos 50 para concluir que este foi um momento de transformações radicais na paisagem urbana de São Paulo e de vitalização da economia nacional, graças à consolidação de um parque industrial. Já estamos de posse de tais informações antes de voltarmos o nosso olhar para uma foto dos anos 50. As fotografias, ao contrário do dado geral, mostram-nos os caminhos, os atalhos, as vielas daqueles aspectos. É a força do particular. Se se pretende um conhecimento histórico tendo presente o que dizem as imagens da cidade, não é a denúncia do "horror do capital" que estará nos trazendo alguma novidade. Neste caso as fotos apenas corroboram "certezas" prévias.
E quanto aos fotógrafos que produziram as imagens: lúcidos ou ingênuos? Aqui se abre outro capítulo para a reflexão. Deixamos a questão apenas indicada uma vez que seu tratamento não cabe neste espaço. De qualquer modo, é certo que o interesse do fotógrafo é fazer uma bela imagem, mas, também, colher na paisagem urbana ou nela imprimir um jogo de formas que constitua um todo e, ainda, conferir sentido à imagem. Mas até que ponto o fotógrafo é consciente das possíveis implicações das imagens que produziu? A mesma pergunta não poderia ser feita também para o poeta?
Uma fotografia não é produzida pela "sociedade", mas por um "olho atrás do visor" -o que, de resto, não exclui o alcance social da imagem fotográfica. De um mesmo motivo pode ser produzido um sem número de imagens -depende do "olho".
Quando o fotógrafo volta a sua lente para a cidade, uma escolha está sendo feita. O retângulo ou o quadrado do visor estabelece o campo da imagem que, ao privilegiar determinada cena, traz à tona significações. Embora "uma" interpretação, "funciona" como documento. E assim a imagem fotográfica possui uma terrível ambiguidade: reflete o objeto e ao mesmo tempo é algo a mais, ou diferente desse reflexo. O mesmo não poderíamos dizer da pintura figurativa (ou de boa parte dela)?
No que importa ao miolo do trabalho desenvolvido em "Fotografia e Cidade", as autoras procederam a um exaustivo exame dos álbuns, levando em conta aspectos temáticos e narrativos, padrões visuais (como o "retrato", o paisagístico, a circulação urbana, o figurista etc) e cuidadosa análise da organização formal das imagens fotográficas. Assim, o procedimento analítico, por vezes até obsessivo, levou em conta o enquadramento, o arranjo, a articulação dos planos e a estrutura da composição fotográfica. Este gigantesco e paciente trabalho chegou ao ponto de indicar minuciosamente a presença estatística, em termos de porcentagem, dos elementos figurativos e dos já mencionados aspectos formais.
Enquanto expressão artística, os álbuns de fotografia da cidade de São Paulo de 1887-1919 e do início da década de 50 idealizaram-na, na justa medida em que também assim o fazem as pinturas figurativas que têm como motivo cenas urbanas. Ao mesmo tempo, "vemos" nas imagens idealizadas os logradouros ou edificações que nos são familiares. A grande questão que se põe é esta: o uso das obras de arte como documento histórico.
Victor Knoll é professor da departamento de filosofia da USP.

Folha de São Paulo

Um comentário:

Cris Prata disse...

Seu blog está cada vez melhor. Parabéns pela iniciativa!!