terça-feira, 28 de abril de 2009

FILOSOFIA - "The Language of Morals"


O modo imperativo

Armando Mora De Oliveira


O filósofo moral que escreveu o agora clássico "The Language of Morals" (1952) pretenderia, em primeiro lugar, que não o confundíssemos com um moralista. Sua tarefa não consiste em dizer às pessoas o que elas devem fazer; nem tampouco, à boa maneira dos filósofos do século 18, basear a reflexão moral numa teoria das paixões humanas, como se a psicologia filosófica pudesse fundamentar os conceitos morais.
Seu ponto de partida é aquela competência socrática que todos os falantes possuem, acessada em maior ou menor grau, de analisar o significado das palavras, a habilidade de compreender uma sentença nas suas várias condições de utilização. O filósofo moral é apenas alguém um pouco mais especializado nesse caminho analítico. Vem a ser um filósofo da linguagem ordinária muito interessado em palavras como "bom" e "dever", que majoritariamente vêm servindo como veículos semânticos de nossas intuições éticas. Hare define o seu projeto como uma análise dos conceitos morais, que leva ao conhecimento das suas propriedades lógicas e permite a seguir avaliar os argumentos baseados em inferências que utilizam essas palavras.
Embora Hare seja habitualmente considerado um utilitarista, é interessante observar que ele só aceita essa classificação se também for reconhecida em seu trabalho a influência de Kant, especialmente o seu apriorismo metodológico. Como é que se pode avaliar um argumento moral, se não tivermos efetuado uma análise lógica dos conceitos envolvidos? A construção da teoria moral supõe a lógica: é necessário determinar a natureza dos conceitos morais. E é assim que Hare nos fornece duas propriedades desses conceitos: a "universabilidade" e a "prescritividade"; com as duas crê ele ser possível contribuir para a elaboração duma lógica modal que representasse a linguagem moral. (Hare desenvolve a "universabilidade" dos conceitos morais no livro "Freedom and Reason", de 1963, denominando a sua teoria como "prescritivismo universal".)
Da mesma forma que Austin denunciou a falácia descritiva ao descobrir o fenômeno pragmático dos enunciados performativos, também Hare vai se opor a uma série de reducionismos e equívocos na interpretação dos enunciados imperativos. (Os imperativos explícitos, junto com as palavras de valor como "bom" e "justo", por exemplo, constituem o essencial dessa linguagem prescritiva, que é a moral.) Um imperativo não expressa um estado de espírito do falante: "Feche a porta" não equivale a "quero que você feche a porta" (expressando um desejo meu), mas tem a força duma recomendação, incita ou "prescreve" (no sentido em que o médico prescreve uma receita) que o ouvinte deva tomar um determinado curso de ação. Ora, com a devida complexidade e dirigidos a agentes livres, dotados de racionalidade, os enunciados morais possuem essa propriedade "prescritiva".
Por outro lado, a natureza universalizável dos enunciados morais é propriamente lógica (enquanto a função prescritiva não é exclusiva da pragmática moral). Se tomo para mim um princípio moral ("Devo respeitar a vida privada alheia", por exemplo), tenho que mantê-lo sempre que se me deparem situações semelhantes. Este "dever ser" está inscrito na função descritiva da linguagem, paralelamente à linguagem ética: se domino o significado de "cadeira", em princípio estou obrigado pela ética da convenção linguística (e da cognição) a usar "cadeira" sempre que a situação mo impuser.
Mas um "princípio moral", segundo Hare, não é apenas um imperativo, um mero comando: "Em São Paulo às terças-feiras não circulam carros de final 4", restringe-se a uma data e a uma determinada área administrativa. Todavia, "Você deve ajudar: utilize o transporte coletivo" pode ser considerado um exemplo de princípio moral; é absolutamente geral, e a minha adesão ao seu teor prescritivo implica da minha parte uma justificativa "racional" (por exemplo, que sou um ecologista ardente etc.).
Se primeiramente a construção da moral exige um exame cuidadoso dos conceitos e a análise da natureza dos enunciados morais (o lado kantiano da empreitada de Hare, completado com a tese sobre inferências com imperativos), é evidente que a moral pressupõe fatos e deriva da ação (e aqui é o lado utilitarista que domina). Embora Hare aceite a separação entre "fatos" e "valores" comum à descendência humeana, a sua posição é singularmente kantiana. Tome-se este seu exemplo: suponhamos que algum cientista (contrariamente às nossas crenças) tenha determinado que um grupo racial é menos dotado intelectualmente que outro; infelizmente seria um fato. Não cabem censura política ou científica, certamente. Mas é curioso que em "virtude" desse fato "não temos que" adotar tal ou tal política de investimento de recursos educacionais, por exemplo. Pode-se adotar a alternativa de privilegiar o grupo menos dotado ou, inversamente, fornecer mais recursos ao grupo racial que se considera ser mais produtivo.
Moralmente, para termos alternativas (moral é "escolha" dum curso de ação) precisamos conhecer os "fatos", discriminar na realidade toda a complexidade situacional sobre a qual temos que agir. Por exemplo: quem pode dizer que conhece e é capaz de justificar (integralmente) a sua posição perante o aborto? Temos a certeza ou podemos ter a certeza de conhecer os fatos que substanciariam a nossa escolha? Até onde deverá ir a defesa da liberdade de imprensa na divulgação da vida privada das figuras públicas (como Diana Spencer)? O filósofo analítico não propõe uma moral (nem uma filosofia da linguagem, aliás), mas -ao lado do sociólogo, do teólogo, do economista, do linguista, do editor-chefe- ajuda a escolher melhor qual das nossas intuições morais se aproxima duma racionalidade defensável.
Armando Mora de Oliveira é professor de filosofia da linguagem no departamento de filosofia da USP.

Folha de São Paulo

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