terça-feira, 28 de abril de 2009

A Consciência de Svevo


Aurora Bernardini

Depois de "Uma Vida" (l892), "Senilidade" (l898) e "A Consciência de Zeno" (l923), veio à luz esta pequena obra-prima de Italo Svevo (l86l-l928), escrita em 1926 e publicada pela primeira vez em 29. A edição brasileira ora lançada traz um prefácio do tradutor, um depoimento-entrevista (l985) da filha de Svevo, Letizia Fonda, e alguns textos sobre o escritor no Brasil, a começar pelo de Otto Maria Carpeaux (l946).
Embora Joyce soubesse de cor a passagem final de "Senilidade"', tanto gostara do segundo livro do amigo, o grande "tour de force", a referência máxima do escritor, o livro que o tornou imediatamente famoso no estrangeiro é, sem dúvida, "A Consciência de Zeno".
E não só pelo fato de nele estarem contidos os reflexos dos dois acontecimentos "verdadeiramente literários" que se deram na vida dele (a longa e rica amizade com Joyce em Trieste e o encontro com as obras de Freud, que leu sofregamente), mas também, obviamente, pelo modo como ele os trata.
Em outros termos: a atualidade espicaçante do mundo descortinado por Freud -"um universo oculto que sugere os abismos prezados pela literatura do século 20"-(conforme diz Antonio Candido de Machado de Assis em "Vários Escritos")-, em que cada geração encontra um nível diferente; e o estilo de Svevo, ainda hoje tão intrigante e desafiador para nós, com seu tipo especial de ironia e seus curiosos "procedimentos".
Entre "Zeno" e "O Bom Velho" há duas diferenças fundamentais. Em primeiro lugar, a época em que foram compostos. Quando começou o "Zeno", em l9l9, a primeira guerra tinha acabado recentemente e a volta de Trieste à Itália tinha sido recebida com grande euforia pelo círculo de Svevo. Este se reunia em volta do jornal italiano, criado em 1918, "La Nazione", para o qual o escritor, ainda obscuro apesar de já ter publicado dois livros, tinha colaborado logo com oito artigos satíricos sobre o "tramway de Servola" (o bonde mais lento do mundo) e uma série de longos artigos jocosos sobre Londres, onde tinha se refugiado a famíla dos sogros, durante a guerra, e onde Svevo tinha negócios por conta da fábrica de tintas submarinas que dirigia. "A máquina tinha sido azeitada. Em 19 sua colaboração ao jornal diminuiu drasticamente. É que ele tinha começado a escrever "A Consciência de Zeno". Foi um momento de inspiração forte e empolgante. Não havia salvação. Aquele romance tinha que ser feito. Certamente, podia-se deixar de publicá-lo, dizia. Finalmente os moradores da casa dele tiveram seus ouvidos poupados dos sons arrítmicos de seu violino" (1).
O livro, conforme se sabe, pretende ser uma biografia, ou auto-análise, que Zeno faz de si próprio, para vingar-se do seu analista, a quem sempre mentira. (Só a título de informação, curiosa foi a observação do médico E. Weiss, a quem o escritor enviou o livro, depois de publicado: "Não me é possível falar do livro, porque com a psicanálise ele não tem nada a ver"). O que importa, para o paralelo que se quer estabelecer, é que aqui o narrador (o livro é escrito em primeira pessoa) se expõe completamente, num processo que a crítica anglo-saxã chama "self-exposure" e num modo de que a tradição modernista brasileira encontra um eco feliz no "palhaço da burguesia" de Oswald de Andrade.
Já a conjuntura em que foi escrita "A Novela do Bom Velho e da Bela Mocinha", apesar dos poucos anos passados, é completamente diferente. A essa altura (l926) Svevo já é um escritor famoso. Não só a crítica francesa e inglesa, graças à intervenção de Joyce, aplaude sua obra -Valéry Larbaud, Benjamin Crémieux, Bobi Bazlen cooperam para a publicação dela no estrangeiro-, mas este último apresenta os romances de Svevo a Eugenio Montale, o que marca o início do interesse por eles por parte da crítica italiana, até então ainda provinciana ou presa a conventículos literários. Em segundo lugar, Svevo, a esta altura, já se considera um "velho", ou seja, quem descobriu que a autonomia da consciência, a rigor, não existe e, "last but not least", o fato de escrever sua "Novela" em terceira pessoa muda sensivelmente o tom da narrativa. O humor, antes auto-dirigido, passa a ser indireto, o engraçado passa a ser irônico, o cômico -não fossem as peripécias da "consciência moral", que resgatam "in extremis" "O Bom Velho"- aproxima-se perigosamente do cínico. Falar dessa consciência moral, cuja procura afinal era uma, senão "a" preocupação máxima do autor (e daí hoje, a sua extrema atualidade), só é possível se entrarmos nas filigranas da linguagem e do estilo do último Svevo.
Aquelas marcas que no passado haviam sido, por parte dos puristas, objeto de censura, ainda estão lá: as frases longas de sintaxe germânica (o pai de Svevo era judeu da Renânia e ele próprio havia passado quatro anos estudando em Wurzburg), o léxico arcaizante, a pontuação toda particular (nesse aspecto é preciso ressaltar a habilidade do tradutor em saber mantê-las), mas também certos usos dialetais (não se esqueça que Svevo "traduzia" do triestino para o italiano) e deslocados, que causam estranhamento e abrem brechas, e que seria preciso acompanhar numa análise quase poética do conto. Tomemos um único exemplo.
Chegado aos seus 60 anos, o bom velho chega também à conclusão de que se, quando jovem, qualquer aventura semelhante àquela a que se dispõe "teria agitado em seu peito todos os problemas do mal e do bem", agora, velho, a aventura lhe é devida, "se não por outros motivos, pelo longo tempo que havia ficado privado de tamanha alegria". É sintomático o papel que, no processo da sedução, desempenha um elemento recorrente. Quando ocorre o encontro fortuito dele com a mocinha, no bonde, a jovem, literalmente, "mantinha o olho escuro fixo" etc. Logo depois, "o sorriso do velho era dirigido àquele olho, que lhe parece , ao mesmo tempo, travesso e inocente". Relembrando o encontro, mais tarde, "o velho pensou que fora o olho infantil da jovem a conquistá-lo". E finalmente: "No lampejo daquele olho havia-se revelado a malícia, como na voz dele, a ânsia. Tinha certeza que se haviam entendido. A mãe natureza, benignamente, concedia-lhe uma vez mais, a última, de amar".
Ora, não só em português o termo "olho" assim usado, quando caberia o abstrato "olhar" ou, ao menos, o plural "olhos", soa estranho e deslocado. No idioma original, tal uso de "olho" é próprio para designar-se uma caraterística animal, mais do que humana. Mas, verificando que em outras situações o autor usa convenientemente o termo "olhar", surge a desconfiança de que o emprego tenha sido voluntário. A desconfiança se transforma em certeza quando se descobre que o conto todo é montado na transformação contemporizante do jovem em velho, do psicológico em fisiológico, do saudável em doente, do abstrato em concreto, do elevado em rasteiro, da vida em morte, da expiação em ressarcimento e, por pouco, da consciência em contingência.
Nota:
1. Cf. "Vita di Mio Marito", de Livia Veneziani , a mulher de Svevo imortalizada por Joyce como Anna Livia Plurabella.
AURORA F. BERNARDINI é professora de teoria literária e literatura comparada da USP.

Folha de São Paulo

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