terça-feira, 28 de abril de 2009

CIDADE, POVO E NAÇÃO. GÊNESE DO URBANISMO MODERNO

Urbanismo sem memória?

Raquel Rolnik

O urbanismo, por mais incrível que possa parecer, ainda é novidade no Brasil. Uma população urbana que beira os 80% do total, mais de uma dezena de cidades que ultrapassaram a casa do milhão de moradores, várias cidades tão antigas quanto a colonização portuguesa -e o urbanismo entre nós evoca erudição, exceção, estrangeirismo.
Este é um dos raros países do mundo onde há mais de um século cidades novas surgem inteiras das pranchetas, para ocupar planaltos antes desertos ou as margens de grandes lagos artificiais que inundam velhas histórias e geografias. E, apesar disso, dificilmente um olhar sobre nossas cidades as identificaria como produto de um projeto ou uma ordem racional. Ao contrário, nossa paisagem urbana parece contradizer planos e desenhos estruturadores ou fundadores, extravasando, tensionando ou se contrapondo sistematicamente às harmonias propostas pelos urbanistas. E, talvez por esta mesma razão, à unanimidade em torno da desordem urbana brasileira soma-se a unanimidade em torno do diagnóstico: falta-nos planejamento urbano, falta-nos urbanismo. Será?
A coletânea de textos de história do urbanismo "Cidade, Povo e Nação" é um bem-vindo esforço para decifrar este enigma. Focalizando o final do século 19 e a primeira metade do século 20, o livro tem como eixo condutor as traduções e apropriações das idéias urbanísticas européias -sobretudo francesas- na América Latina.
Fruto de um seminário (1) organizado para recolher os processos de constituição do urbanismo como ciência e experiência em várias cidades do Brasil e da América Latina, assim como suas relações com as pautas do urbanismo europeu no início do século, o livro traz um interessante e variado painel de propostas e intervenções urbanísticas no Rio de Janeiro (o belo ensaio de Margareth Pereira, comparando os planos Agache e Le Corbusier e o artigo de M. Tognon sobre o urbanismo fascista de Piacentinni); em São Paulo (Marisa Carpintero sobre o Instituto de Engenharia na constituição do urbanismo paulista, M. Cristina Leme sobre a formação do urbanismo como disciplina, Maria Ruth Sampaio sobre a influência das idéias de Christiano Stockler das Neves); em Santos (o artigo de Ana Lanna sobre a ação sanitarista/disciplinadora na cidade); em Belo Horizonte (a precisa análise de Berenice Guimarães sobre o projeto de Aarão Reis); e em Porto Alegre (a análise de S. Pesavento sobre o plano Maciel).
Há textos que traçam panoramas gerais, como os de Luiz C. Ribeiro/Adauto Cardoso e Robert Pechman. Carlos R.M. de Andrade traz um riquíssimo e bem-acabado painel sobre as concepções de Saturnino de Brito, profissional que elaborou planos e projetos para várias cidades brasileiras no início do século; A. Cardoso escreve sobre as idéias de Lúcio Costa, idealizador de Brasília, e Lúcia Silva sobre a trajetória de Agache no Brasil. Completam a coletânea um intrigante ensaio sobre o projeto de Henry Ford na selva amazônica nos anos 30, de Yara Vicentini, e artigos de Christian Topalov, Catherine Bruant e Jean-Pierre Frey sobre o urbanismo francês e europeu no início do século.
Duas grandes teses e uma grande ausência emergem da leitura do livro. A primeira tese é a estranha e incômoda coincidência das idéias modernizadoras formuladas por urbanistas para cidades do primeiro mundo e sua transposição para as cidades brasileiras. Aqui aparece uma espécie de descolamento da realidade local, mas, ao contrário do que se poderia supor à primeira vista, não se trata de "idéias fora de lugar", e sim da construção de uma linha demarcatória excludente: de um lado, os que se identificam com um projeto de modernidade nos termos em que foi formulado pela civilização européia, de outro, os que passarão à eternidade em estado de barbárie. Aqui, o projeto de modernidade se confunde com uma estratégia de dominação que, entre nós, se apropria perversamente de uma agenda social para afirmar um projeto elitista, e não para promover a cidadania e estender a urbanidade.
Uma segunda tese, esta implícita no livro, é a absoluta falta de visibilidade e memória, no tecido das cidades brasileiras contemporâneas, de um urbanismo pródigo em projetos e intervenções. Só para ficar nos planos e projetos que foram efetivamente implementados: onde se perdeu o desenho de Aarão Reis para Belo Horizonte? Por que a Praça Onze no Rio de Janeiro se deixou destruir, mesmo depois da cidade ter vivido uma turbulenta revolta pós-Reforma Pereira Passos? É como se tivéssemos que viver tudo de novo, repetir tudo permanentemente, porque somos incapazes de absorver criticamente nossa própria experiência passada. Não se trata, repito, de uma questão acadêmica: por exemplo, um dos grandes debates sobre política urbana hoje dá-se em torno da gestão dos serviços públicos, ganhando força a tese da privatização. Ora, nossos serviços públicos urbanos eram totalmente privados na Primeira República. Funcionavam melhor? Pior? Eram mais includentes? Eficientes?
Vamos admitir que o urbanismo brasileiro tenha nascido de raízes estrangeiras: não importa, se vicejou nestas paragens, encontrou em algum ponto campo fértil; se foi condenado a um eterno esquecimento, é porque não soube refletir o rosto da cidade. Aí está precisamente a grande ausência do livro: a cidade real, aquela que recebeu, rejeitou, interagiu com as idéias urbanísticas. Ao penetrar na história do urbanismo, o livro nos incita a conhecer a ainda desconhecida história de nossas cidades. Entender suas lógicas e movimentos de constituição para poder, quem sabe, num futuro próximo, desenhar um urbanismo com um espelho na mão e a memória na cabeça.
Nota
1. "Origens das Políticas Urbanas Modernas: Europa e América Latina, Empréstimos e Traduções", promovido pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro em conjunto com o Centre de Sociologie Urbaine de Paris, em 1994.
Raquel Rolnik é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

Folha de São Paulo

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