domingo, 19 de abril de 2009

CIDADÃO KANE - O MAKING OF


O insconsciente de Kane
Yanet Aguilera
ROBERT L. CARRINGER; CIDADÃO KANE - LIVRO - LAURA MULVEY

o livro de Carringer é uma pesquisa bem documentada da produção e bastidores de "Cidadão Kane" e, ao mesmo tempo, uma instigante narrativa sobre as intrigas e acontecimentos que levaram Orson Welles a fracassar em Hollywood.
Os achados narrativos e inovações técnicas do grande filme de Welles, por si sós, justificariam que o roteiro, a fotografia e a direção de arte fossem tratados em capítulos separados. Mas Carringer tem ainda outra razão para assim proceder: quer estabelecer com mais rigor a contribuição de Welles em cada um desses planos.
Seu propósito inicial é situar-se em relação à célebre polêmica sobre os achados do roteiro. Estes seriam do roteirista oficial do filme, H. Mankiewicz, como quer Pauline Kael, ou do próprio Welles, conforme pretende Peter Bogdanovich (1)? Ao atribuir a Mankiewicz a idéia dos vários focos narrativos do "Kane", Carringer pretende dar-lhe o que lhe pertence. Mas a inexistência de outros trabalhos significativos assinados por ele mostraria que o seu fôlego dramático era curto e deixaria entrever quem é o verdadeiro "criador" do filme.
A presença marcante de Welles ainda é reafirmada quando os demais colaboradores são vistos como meros coadjuvantes que seguem suas detalhadas instruções. Sua experiência teatral e radiofônica e seu espírito inovador teriam predominado em quase todos os espaços da produção. A exceção seria Toland, um fotógrafo aberto ao experimentalismo e, por isso, único parceiro de Welles. A ele Carringer atribui um "estilo", já visível em "The Long Voyage Home", de John Ford (1939). Neste filme, a fotografia de Toland já mostraria o uso da luz de efeito expressionista e a profundidade de foco, uma influência do fotojornalismo veiculado por revistas como "Life". Entretanto, diz Carringer, haveria uma coincidência entre estes achados fotográficos e os efeitos visuais e dramáticos que Welles já teria trabalhado no Mercury Theater e queria reproduzir em seu filme.
Embora nos anos 80 a noção de autoria já estivesse sendo rediscutida, o livro de Carringer jamais a põe em dúvida, esforçando-se para constituir Welles como o "autor" de "Cidadão Kane". É inegável porém o interesse de alguns resultados de sua pesquisa. Como se sabe, segundo André Bazin, a estética realista do "Cidadão Kane" dependeria do uso constante da profundidade de foco que, ao organizar a significação dramática dentro da integridade do espaço físico, evita a imposição de sentidos gerada pelo esquema da montagem. O trabalho de Carringer abala os fundamentos desta leitura e mostra que o efeito de profundidade é quase sempre obtido mediante um truque ótico de superposição de imagens.
O "Cidadão Kane" da crítica e cineasta Laura Mulvey é a resposta ao desafio de Carringer no sentido de obter uma análise do "Kane" segundo os postulados da crítica feminista. Como se sabe, este tipo de enfoque -uma combinação de feminismo, marxismo, psicanálise e semiologia- gerou, em diversas áreas durante os anos 80, trabalhos extremamente importantes como os da revista "October".
O feminismo descobriu no cinema de Hollywood um constante binarismo sexual. Os filmes hollywoodianos levariam o espectador a se identificar com o olhar masculino que torna a mulher um objeto sexual. Para Mulvey, "Cidadão Kane", à sua maneira, combinaria suas imagens segundo esta estrutura binária. A estátua de mármore do banqueiro Thatcher e a imagem sexualizada de Susan no cartaz da boate prefigurariam a separação entre o mundo masculino e o feminino, que dividirá o filme em duas partes. A primeira compreenderia a juventude radical de Kane e iria até seu fracasso na política; a última, o mundo da ópera e o isolamento em Xanadu.
Entretanto, Welles trabalharia o binarismo de forma inovadora, com uma clara intenção política. Kane vê Susan como objeto sexual, mas o espectador não se identifica com esse olhar, e esta separação acabaria dando à mulher outro estatuto. Nem vítima, nem "vamp", Susan é a meu ver um símbolo do oprimido que enfatiza o processo de opressão.
Segundo Mulvey, há um apelo para um jogo de desvelamento já na primeira sequência do filme, quando a câmera desliza sobre a cerca e o letreiro "Entrada Proibida". A câmera ajudaria a construir uma estrutura que não privilegia um esquema "antropomórfico" ancorado no enredo, mas que estabelece uma rede de significações ocultas dadas pelos objetos (não apenas a bola de vidro) e por cenas "sintomáticas". O jogo de desvelamento, de caráter semiótico e psicanalítico, é ainda reforçado pelo fato de a câmera e o espectador saberem mais que as personagens -apenas eles identificam "Rosebud" ao pequeno trenó que liga Kane à sua infância, por exemplo- e são os únicos que percebem o filme como um quebra-cabeça. Mulvey acredita que o jogo reflexivo proposto por "Cidadão Kane" vai além do aspecto moral apontado por Bazin (a profundidade de foco permitiria ao espectador uma rara liberdade de pensamento no cinema), pois ele não apenas permite, mas convida à reflexão.
Entretanto, é ainda a velha polêmica entre Welles e Mankiewicz o pano de fundo da argumentação de Mulvey, vista agora na maneira como cada um pensaria Kane em relação a seu modelo: William Randolph Hearst, o famoso magnata da imprensa. O livro afirma que o roteirista via em Hearst a ambiguidade e complexidade de um personagem dramático, enquanto Welles expressaria no filme os sintomas sociais e políticos de uma nação, detectados a partir do desmonte da ambiguidade e complexidade do destino dramático de um indivíduo.
Como Welles faria isto? Copiando calculadamente traços temáticos da biografia do seu modelo e, ao mesmo tempo, criando um "inconsciente ficcional" para Kane. A infância pobre, o trauma da separação da mãe, o relacionamento com Susan compõem os elementos "fictícios" em relação à vida de Hearst. Assim, em vez da interpretação dramática de uma biografia, temos uma trama psicanalítica.
A análise determinada pelo trauma edipiano requer uma leitura retrospectiva do filme. A primeira parte -a juventude radical de Kane- só encontrará seu pleno significado na segunda -que trata de seu autoritarismo e isolamento. Não existiria, garante Mulvey, nenhuma ambiguidade com relação a Kane, pois a sua fase radical de político progressista seria apenas uma luta contra o pai-substituto, que o separara da mãe. Além disso, sua atividade jornalística, ligada à imprensa marrom, já colocaria em dúvida os objetivos populistas da sua luta contra os descalabros do capitalismo. A simpatia que Kane desperta no começo é atribuída ao acidental "charme de Welles" e à versão não-confiável do "puxa-saco" Bernstein.
A vida de Kane seria portanto uma metáfora de forças reacionárias, ainda reforçada pela identificação do personagem com Hearst, uma figura reconhecidamente de extrema-direita e formadora de opinião na própria época do filme. O falso populismo das campanhas jornalísticas do personagem e o "útero-xanadu" são uma alegoria do isolacionismo republicano. Kane-Hearst representa as forças que tentavam destruir a política progressista do New Deal de Roosevelt (da qual Welles era ativista) e queriam bloquear a participação dos EUA na Segunda Guerra, afim de possibilitar a vitória de Hitler na Europa. "Cidadão Kane" seria, assim, um instrumento de Welles em sua luta contra o fascismo.
É bom lembrar, entretanto, que a tentativa de despojamento dramático do protagonista e o ofuscamento do aspecto antropomórfico do enredo levam Mulvey a contrapor a versão distanciada e "confiável" de Leland à do bajulador Bernstein, ao mesmo tempo em que a divisão do filme é feita para subordinar a primeira parte à segunda. Este processo de hierarquização, a meu ver, acaba com a composição prismática e labiríntica de "Cidadão Kane". A coerência interna que Mulvey atribui a Kane parece um fio de Ariadne em linha reta que, ao mostrar um caminho de saída, esquece os desvios, tensões e ambiguidades que fazem o encanto do labirinto.
Nota
1. Respectivamente em "The Citizen Kane Book" (Secker & Warburg, 1971) e "The Kane Mutiny" (in "Esquire", 1972).
Yanet Aguilera é doutoranda no departamento de filosofia da USP.

Folha de São Paulo

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