terça-feira, 28 de abril de 2009

CALANDRA - O SUFOCO DA IMPRENSA NOS ANOS DE CHUMBO


O silenciamento do "Correio da Manhã"

Bernardo Kucinski
REGIME MILITAR

A narrativa jornalística lida com fatos singulares. Para ser uma boa narrativa, além dos atributos de estilo, como concisão e clareza, é preciso que os fatos tenham significados universais, sejam contextualizados, se possível interpretados, analisados. Mas serão sempre fatos singulares. Essa é uma característica tão marcante do material jornalístico, que acaba determinando o próprio saber do jornalista, sua forma de pensar, de armazenar e acessar memórias, de falar em público. Muitos jornalistas são, por isso, bons contadores de causos.
Pery Cotta, em seu "Calandra", revela-se um excelente contador de causos. Em estilo fluente e expressivo, conta o episódio da invasão do "Correio da Manhã" por um pelotão de soldados enraivecidos, no dia 13 de dezembro de 1968, quando foi promulgado o AI-5 e da prisão de seu diretor Osvaldo Peralva, levado de camburão. Relata sua própria prisão, num hangar da aeronáutica, apenas para ser solto logo depois, sem que nada acontecesse. Apesar de a aeronáutica considerá-lo como o jornalista responsável pelas revelações do caso Parasar, do plano do brigadeiro João Paulo Penido Bournier, de eliminar estudantes e lideranças políticas em 1968, usando os atiradores de elite do grupo de ações de salvamento dos pára-quedistas.
"Calandra" é também um expressivo e bastante nostálgico registro do modo de produção jornalística existente nos anos 60, com tipos feitos de chumbo derretido, chapas encurvadas na Calandra -daí o nome do livro-, redações encardidas de fumaça e tradição, contínuos compenetrados que serviam cafezinhos para jornalistas ilustres. O ritual do fechamento e até o famoso rito da iniciação do foca -mais lenda do que realidade- estão ali, no episódio do chefe de reportagem que joga no lixo a matéria do iniciante quase sem a ler. É um relato muito expressivo daquele jornalismo apaixonado, que a geração pós-moderna de hoje, cínica e asséptica, chama, pejorativamente de "jornalismo romântico".
As deficiências de "Calandra" estão na contextualização e análise. Afinal, 25 anos depois do fechamento do "Correio da Manhã", estava na hora de se tentar entender melhor as razões do que aconteceu e não apenas relembrar com indignação episódios conhecidos, muitos deles já relatados antes em "Um Jornal Assassinado", escrito por Jefferson de Andrade e Joel Silveira (José Olympio, 1991). Pery Cotta não consegue responder satisfatoriamente às perguntas que ele mesmo levanta repetidamente ao longo da narrativa: por quê? Por que tanta brutalidade? Por que tanto atentado à liberdade de imprensa?
E há outras questões: por que o "Correio da Manhã", tão oligárquico como todos os jornais de qualidade do Brasil -geridos por famílias quatrocentonas como se fossem latifúndios-, foi o único jornal dessas elites proprietárias conservador a ser fechado? E por que foi o único deles que se negou a ser complacente com a ditadura? E até que ponto o estrangulamento do "Correio da Manhã", mais do que fruto de uma exacerbação episódica, no contexto da Guerra Fria, foi de fato instrumental na construção do grande e duradouro consenso da imprensa brasileira, cada vez mais forçado e estranho, numa sociedade cada vez mais dividida e polarizada?
Foi o silenciamento do "Correio da Manhã" o episódio-chave na construção do consenso? Ou foi o desmantelamento do "Última Hora", de Samuel Wainer, ligado ao campo popular e ao nacionalismo? Talvez o estrangulamento do "Correio da Manhã" tenha sido um dos episódios mais importantes nesse processo, porque ali se congregaram, nos idos do AI-5, já sob pressão autoritária, como se fosse numa grande trincheira de resistência intelectual, muitos dos mais ilustres pensadores e jornalistas daquele tempo.
Na redação do "Correio da Manhã" conviviam Janio de Freitas, Otto Maria Carpeaux, Antonio Houaiss, Carlos Heitor Cony, Lino Grunewald, Luiz Alberto Bahia, Antonio Callado. É preciso lembrar que a imprensa brasileira viveu um de seus momentos mais criativos e poderosos nos últimos anos da década de 60, apesar da Guerra Fria, dos atos institucionais e da ditadura. Prevalecia a influência dos grandes movimentos pelos direitos civis nos EUA, da sublevação estudantil na França.
O clima do jornal, como lembra Pery Cotta, era da mais ampla liberdade e estímulo à criatividade. Segundo outros relatos, como o de Maria Estela Bernardo, então uma jovem jornalista, a este autor, até mesmo principiantes podiam sugerir e escrever editoriais no "Correio da Manhã". Possivelmente, influência das bandeiras de luta dos estudantes e intelectuais franceses, contra a apropriação da "mais-valia intelectual".
Talvez por isso, pelo potencial de engajamento intelectual dessa experiência, seu desmantelamento tenha tido consequências mais profundas e mais permanentes na disposição do intelectual brasileiro de se engajar na trincheira contingente do jornalismo convencional. Após um período de resistência, no âmbito da imprensa alternativa, nunca mais se engajaram da mesma forma.
No outro livro, encontramos algumas explicações para o engajamento crítico do "Correio da Manhã", principalmente nos depoimentos de Osvaldo Peralva e Janio de Freitas. Foi decisiva a personalidade de Paulo Bittencourt, que dirigia o jornal como um serviço prestado à comunidade e numa tradição editorial de crítica ao autoritarismo que já vinha de longe.
Paulo Bittencourt não via o jornal apenas como uma indústria, apesar de entender que devia ter a viabilidade econômica de uma indústria. De fato, foi asfixiado economicamente, muito mais do que pelos sucessivos empastelamentos e apreensões de edições. Com sua morte, sua viúva, Niomar Moniz Sodré de Bittencourt, assumiu o comando do jornal, com o objetivo firme de preservar essa tradição, até como forma de prolongamento de uma relação pessoal, de uma memória. No regime de uma imprensa de grandes famílias, são idiossincrasias familiares, e não articulações de frações da burguesia, que explicam melhor os comportamentos de exceção.
Pery Cotta lembra corretamente em seu livro que a ditadura deixou como legado a autocensura. Trata-se do traço mais marcante do atual jornalismo brasileiro, sendo parte do próprio "ethos" do jornalista. É a contrapartida, na esfera da práxis jornalística, do processo de construção do consenso. À medida que se silenciaram os veículos dissidentes, que se promoveram sucessivos expurgos nas redações, reduziu-se o espaço para o pluralismo e jornalistas passaram a se autocensurar até mesmo como estratégia de sobrevivência.
Os últimos dois capítulos do livro de Pery Cotta não têm nada a ver com a história do "Correio da Manhã". Antes disso, ele discute as acusações -que considera injustas- de que foi um serviçal da ditadura, por ter trabalhado nas assessorias de imprensa dos ministros do Interior e do Planejamento, durante a ditadura. Essas acusações surgiram no contexto da polêmica em torno do grupo de jornalistas que pleitearam aposentadorias especiais por terem tido suas carreiras truncadas pela ditadura. Pery Cotta é um dos que pleiteou e recebeu. Fica a impressão de que o livro foi escrito não tanto para explicar a saga do "Correio da Manhã", mas como um exercício de auto-explicação.

Bernanrdo Kucinski é jornalista e professor de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP.

Folha de São Paulo

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