terça-feira, 28 de abril de 2009

A BELEZA DIFÍCIL


O cristal terrível

Viviana Bosi Concagh

Repeat that, repeat,/ Cuckoo, bird, and open ear wells, heart-springs, delightfully/ sweet,/ With a ballad, with a ballad, a rebound/ Off trundled timber and scoops of the hillside ground, hollow/ hollow hollow ground:/ The whole landscape flushes on a sudden at a sound."
"Ecoa isso, ecoa,/ Cuco, ave, abre as fontes-ouvidos, coração-nascentes, suavemente/ voa/ Num revôo, um rebôo, uma canção/ De troncos trincados e buracos do chão, oco/ oco oco chão:/ Toda a paisagem nasce de súbito a um som."

Este fragmento, na tradução de Augusto de Campos, nos serve como súmula da própria concepção de poesia do inglês Gerard Manley Hopkins (1844-1899), e entendemos por que Jakobson nele se inspirou quando pensou a função poética. Assim como utiliza variados recursos para acentuar a curva do discurso, levando as palavras a reencontrar o instante mais alto do tempo, e arranjando-as em cascatas sonoras, também alevanta o ritmo, à procura do pico entusiástico. Em consonância com o sentido, o mundo é concebido por som e imagem.
Na sua "Introdução" aos poemas, Hopkins detém-se na questão da marcação de sílabas, insistindo na maior expressividade do acento "saltante". Um transbordamento exaltado está na origem do "Sprung Rhythm", como ele o chama, ritmo de tônicas contínuas. Outra criação do poeta, o "rove over line" ou "overreaving" é um verso que não termina na linha: mais do que um "enjambement", trata-se de uma continuidade rítmica e mesmo rímica, como vaga sonora entrelaçando-se com o que vem a seguir. Meticuloso, ele marcava no texto todos os acentos e durações variáveis que acrescentava, com uma notação própria. A pulsação do poema seguia as ondas da ênfase de sentido. Assim, enquanto muitas sílabas não valem um tempo, e são sobras que ele não conta ("hangers" ou "outriders"), outras podem valer bem mais. As palavras são submetidas ao fluxo musical, "penduradas sob o verso ou cavalgando para frente e para trás, em outra dimensão além do próprio verso".
As repetições e palavras compostas, que na época eram consideradas ornamentos maneiristas, hoje as percebemos como necessárias para melhor transmitir a intenção de arrebatamento, forma de imitação da própria natureza criadora em seu momento de geração. "Isso quase não é mais inglês", disse um crítico. Se já é estranho à própria língua, imagine-se o trabalho do tradutor. Augusto de Campos preservou a concisão expressiva da construção, a brusquidão sintática. Procurou emular o caráter mais monossilábico do inglês e realçar a intensidade rítmica, comprimindo a frase. Preservou o espírito de Hopkins dialogando com Sousândrade e com o seu próprio estilo tradutório. A versão anterior, de Aíla de Oliveira Gomes, feita com denodo e antecedida de boa introdução, pode ser conferida como comparação de duas formas diferentes de traduzir.
Característico da poesia de Hopkins, o enxerto de filosofia grega e cristianismo. Tal aparece claramente em poemas como "That Nature is a Heraclitean Fire", em que a natureza é descrita em toda sua potência, mas o homem é "fogo-fátuo" e para escapar do moinho escuro final, só a luz de Cristo pode transfigurar este pobre caco, João-Ninguém. O mesmo motivo repete-se em outros poemas, como "The Leaden Echo and the Golden Echo", que tematiza o contraste entre a beleza terrena em seu esplendor transitório e um lugar de onde jorra a eternidade. O chumbo aqui torna-se metonímia da força de gravidade que escoa, enquanto o ouro lembra a transformação alquímica, que para sempre ecoa. Há uma complementaridade entre o "variegado" ou "milmanchado" ("dappled"), como específico das coisas da terra (a pele do peixe, a cor da folha...) e o lume eterno, correspondendo à idéia platônica do Belo. As constantes aliterações, assonâncias e ecos contribuem para a repetição do mesmo princípio que se desdobra e se unifica. O misticismo de Hopkins é intensamente concreto, pois ergue ao cume a aparência e o movimento dos seres. Como em Platão, a beleza é sinal da divindade, e o amor ao belo faz brotar as asas internas, elevando o apaixonado.
O "encontro nu de sensualidade e ascese" (Bridges) orienta-se pela influência contraditória do esteticismo "fin de siècle" de Pater e do catolicismo empenhado de Newman, que o levou à escolha heróica pelos severos exercícios espirituais de Inácio de Loyola, tornando-se padre jesuíta.
Hopkins usava em seus escritos duas expressões que sintetizam sua visão de mundo: "inscape", desenho ou padrão interior de cada coisa, que podemos captar pela atenção extrema, e "instress"', energia despendida pelos seres para manter sua existência. Esses conceitos, de sua lavra, são o alvo do poeta: aderir à alma das coisas para exprimi-las pelo olhar individual. Por fim, almeja encontrar o "inscape" da própria linguagem, utilizando os significados como elementos importantes mas não essenciais para sua mística poética.
Condena o que chama de "poetas do Parnasso", que imitam a si mesmos quando sem inspiração, e não conseguem alçar vôo além de um patamar medíocre, revelando ao leitor, com previsibilidade, o seu truque criativo. Compõem, assim, uma poesia artificial, que expõe seus procedimentos engenhosos.
A sintaxe de Hopkins, entrecortada e cheia de arestas, constitui um libelo contra a mediocridade dos versos arredondados da época vitoriana, que se ancoravam em convenções de "bom gosto", avessos ao espírito arriscado do poeta, o qual só se submetia à própria alta disciplina. De sua poesia foi dito que continha têmpera, conta-nos Augusto de Campos em lúcido prefácio -como um "cristal terrível".
Viviana Bosi Concagh é professora de teoria literária na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara.

Folha de São Paulo

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