terça-feira, 28 de abril de 2009

ARISTÓTELES NO SÉCULO 20


A atualidade de Aristóteles
Alberto Alonso Muñoz
AS RAZÕES DE ARISTÓTELES

O século 19 foi, sem dúvida, o século de Kant, e o 17, o de Descartes. Teria sido o século 20, sem que tivéssemos percebido, o de Aristóteles? É essa a sugestão ousada, presente em dois livros de Enrico Berti, professor na Universidade de Pádua.
"Aristóteles no Século 20" é uma história do aristotelismo, ou melhor, da influência de Aristóteles na filosofia deste século. Berti não reconstrói apenas as principais interpretações de Aristóteles no século 20. Ele nos mostra como Aristóteles (ou, quase sempre, uma certa leitura de sua filosofia) esteve na origem de diversas teses admitidas pelas principais correntes filosóficas atuais.
A esse respeito, Berti lembra que os estudos filosóficos mais interessantes no século 20 surgiram em países nos quais a neo-escolástica não teve a força impeditiva que conseguiu nos países da Europa latina, no final do século 19 (na França e na Itália em particular e, cumpre lembrar, também no Brasil). Na Alemanha, a filosofia de Aristóteles havia sido banida, como filosofia universitária oficial, desde pelo menos a crítica kantiana à metafísica, que marcará a cultura filosófica alemã até o início do século 20. Haverá então espaço, na cultura alemã, para o ressurgimento de um aristotelismo não-escolástico, resultante de um interesse em resgatar a cultura grega como elemento dinamizador da própria cultura alemã.
Em seguida, Berti retraça a biografia intelectual de Heidegger a partir de seu interesse, extremamente precoce, pela filosofia aristotélica. Vemos surgir pouco a pouco, já nos anos de juventude, quando Heidegger ainda pensava em ingressar na carreira eclesiástica, uma obsessão pelos significados do verbo "ser" em Aristóteles, que desaguará na interpretação de sua filosofia como uma "onto-teologia" e a primeira grande filosofia do "esquecimento do ser". Mas, lembra Berti de modo bastante convincente, a leitura heideggeriana é apenas uma atualização para uso próprio da interpretação escolástica que o havia marcado em seu período católico. Trata-se de um capítulo realmente fascinante em que, com a ajuda de Aristóteles, Berti torna Heidegger um pouco menos obscuro do que habitualmente. Surgem assim as origens de cada um dos grandes mitos (e equívocos) heideggerianos sobre Aristóteles: entre outros, que a homonimia "pros hen" deva ser compreendida a partir da analogia de atribuição, ou que a teoria das quatro causas tenha tido como modelo o processo humano de fabricação técnica de objetos, ou que Deus seja pura potência, ou que a unidade do ser deva ser encontrada no conceito de "alétheia" etc.
O capítulo 3 oferece um quadro da filosofia analítica bastante diverso daquele a que muitos estarão acostumados. No mundo anglo-saxão não houve propriamente renascimento aristotélico, porque ali as universidades, desde o final da Idade Média, não tiveram a Escolástica como modelo filosófico oficial. Pôde haver então um interesse contínuo e difuso por Aristóteles, que florescerá em Oxford, na segunda metade do século 19, a partir de estudiosos como B. Jowett, H. Jackson ou A. Grant, que estudaram na Alemanha e importaram as técnicas-padrão de pesquisa da filosofia antiga ali desenvolvidas.
É assim que, com um interesse voltado fundamentalmente para a "Ethica Nicomachea", se forma pouco a pouco um grupo que irá fundar, em seguida, a "Aristotelian Society", patrocinadora, em seguida, sob a direção de W. D. Ross, da tradução oxoniana de todo o "corpus" aristotélico. O mais surpreendente, contudo, é a influência que o grupo aristotélico da Inglaterra terá sobre a emergência da filosofia analítica do período. Berti lembra, com certeza para a surpresa de muitos, que Austin, Ryle, Anscombe e mesmo, em menor medida, Strawson, nomes centrais nessa tradição, iniciaram sua carreira universitária dedicando-se prioritariamente à filosofia antiga.
O último capítulo encerra o livro com uma discussão sobre o neo-aristotelismo anglo-americano (A. Mcintyre, B. Williams), a filosofia política de L. Strauss, E. Voegelin e H. Arendt e, finalmente, a hermenêutica de H. Gadamer. Nesse caso, o intento de Berti é muito mais apresentar as interpretações que esses autores ofereceram de Aristóteles do que apontar para uma origem aristotélica de seus interesses.
Se o objetivo de "Aristóteles no Século 20" é mostrar como o filósofo interferiu no pensamento de nosso século dirigindo-a dos bastidores, "As Razões de Aristóteles", por sua vez, tem como meta apresentar um panorama da filosofia aristotélica, ou antes de seu método. Segundo Berti, por ter admitido para cada domínio do saber um tipo conveniente de precisão e de método, a filosofia de Aristóteles concorda surpreendentemente com os resultados finais da filosofia no século 20: a cada esfera caberia uma "racionalidade" (o termo é de Berti) própria, irredutível às demais.
O primeiro capítulo distingue os métodos da ciência em Aristóteles (demonstração, dialética e análise semântica), assumindo a tese de J. Barnes de que a demonstração é apenas a forma da ciência tal como deve ser ensinada, não tal como deve ser investigada (o que caberia à dialética). Nos capítulos seguintes, Berti então analisará respectivamente os métodos praticados na física, na metafísica, na ética e na retórica. A dialética será assim o método privilegiado da física, pela qual os princípios e as causas poderão ser determinados. A dialética consiste então no exame das teses dos adversários a partir de seu confronto com as premissas aceitas por ambos os interlocutores, as quais interpreta como sendo os "endoxa" (opiniões reputadas). Este é um ponto polêmico, pois alguns comentadores de Aristóteles entendem os "endoxa" como sendo não as premissas compartilhadas pelos debatedores, mas as próprias "teses" discutidas.
Berti considera que a "metafísica" está em estreita continuidade com a "física", diferindo apenas em generalidade. Por examinar os princípios próprios a todas as ciências, a metafísica não pode limitar-se a um domínio específico de objetos, e seu método, diferentemente da matemática, jamais poderá ser a demonstração. Seu método privilegiado agora seria o exame semântico do significado dos termos, embora Berti não se esqueça da presença da dialética ao longo de todos os tratados, agora encarregada de defender os primeiros princípios de maneira "refutativa" ou "elenktika".
O capítulo 3 dedica-se à análise dos fundamentos da filosofia prática. Berti distingue entre o conhecimento dos princípios da ética (a sabedoria) e a "phrónesis" (encarregada de conhecer os particulares na ação). Por fim, examina a retórica, domínio em que o discurso é menos preciso e no qual a demonstração cede lugar para a persuasão, e ressalta os objetivos distintos da retórica sofística e da retórica aristotélica (a qual está submetida a critérios éticos de persuasão e inserida numa concepção não-relativista da teoria do conhecimento).
Não cabe exigir um método único nem o mesmo grau de precisão em todos os territórios do saber: eis a lição de Aristóteles que o século 17 não soube ouvir e que, conforme Berti, nos cabe admitir. Como em qualquer leitura de Aristóteles, o leitor especialista duvidará de algumas das interpretações de Berti, mas essa é uma questão menor. Os dois livros valem bastante a pena, principalmente para quem quiser convencer-se de algo que deveria ser óbvio: Aristóteles não é apenas um filósofo da Grécia Clássica ou da Idade Média, mas também do século 20.
Alberto Alonso Muñoz é doutorando em filosofia antiga pela USP e pesquisador colaborador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Folha de São Paulo

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