terça-feira, 28 de abril de 2009

AÇÃO, SUSPENSE, EMOÇÃO - LITERATURA E CULTURA DE MASSA NO BRASIL


Por que ler os best sellers?

Gustavo Sorá
SILVIA HELENA SIMÕES BORELLI

Eis um livro instigante, que se propõe desvendar as identidades (textualidades) condensadas nos produtos literários qualificados pela crítica como "para", "sub", "infraliteratura", ou ainda literatura de mercado, best seller. Nesses termos a autora identifica uma ação de exclusão gerada pelo que chama "campo literário". Segue-se um programa para banir essa violência classificadora e compreender as virtualidades de uma tradição de escritos fundadores das formas de comunicação da modernidade: o folhetim, a crônica, o romance popular e outros produtos associados a massificação ou industrialização da cultura.
Propondo uma "antropologia das culturas contemporâneas", este trabalho se inscreve numa tradição de estudos que procura questionar as dicotomias popular/erudito, cultura popular de massa/cultura de elite, e oferece uma abordagem original para o problema. A análise abre com uma exposição e crítica das formulações que exacerbaram a separação axiomática entre os gêneros consagrados e as "outras" literaturas, feitas para o grande público (formulações representadas pela Escola de Frankfurt e, no Brasil, por estudos como os de Muniz Sodré).
Apoiada em Eco, García Canclini, Barbero, Morin e Ortiz, entre muitos outros, a autora posiciona-se num empreendimento de "desterritorialização" para suprimir fronteiras entre diferentes e não homogêneos universos culturais. Decanta assim uma proposta normativa capaz de gerar outras classificações, baseadas em essências não contempladas e relativas a matrizes comunicacionais elaboradas com elementos primordiais do pensamento moderno (ação, suspense, emoção).
Fruto do choque da discussão teórica com fatos empíricos que fundamentam uma demonstração, no seu núcleo o livro abre-se para sua contribuição mais original. A obra de Marcos Rey, que já vendeu cerca de um milhão de exemplares, não denota, para Borelli, simples "paraliteratura". À luz de suas características narrativas, do perfil "multimídia" do autor e da alavanca editorial que o torna público, é possível reconstruir uma identidade exemplar para demonstrar a fluidez, o hibridismo dos bens e das trocas culturais modernas e "pós-modernas".
Como garantia de suas afirmações, a autora funda as observações nas origens do gênero romance popular, remontando à clássica bifurcação entre folhetim e crônica -gêneros colados à expansão de novas comunidades de leitores (mulheres e jovens), à veiculação pelo jornal e à evolução da atividade editorial no Brasil.
Paralelamente à história da crônica e do romance de entretenimento, o livro retraça também a história dos livros didáticos e "paradidáticos". Em 1966, direcionada para este segmento de mercado, nasce a Ática, divulgadora da obra de Marcos Rey. Na economia do texto, Silvia Borelli considera preferencialmente aqueles aspectos da evolução técnica da editora que a destacam como um ponto de dispersão central da produção escrita desse autor. É sem dúvida fundamental multiplicar as perspectivas usadas pelo estudo, quando situa os livros do autor nas coleções, enquanto unidades de totalização e difusão produzidas por operações de seleção/apresentação propriamente editoriais. A junção da análise textual com a aproximação peritextual, baseada na ação editorial e nos efeitos da publicação em coleções paradidáticas, permitem ampliar o lugar e os significados da obra de um autor e fugir da dicotomia entre análises "externas" e "internas".
Neste percurso, de complexa abordagem etnográfica, a autora abre portas para diálogos com os estudos em curso sobre a história e sociologia da edição no Brasil. Dentre estes cabe mencionar a sinalização da passagem da Ática de uma lógica de trabalho "amador", sustentada por uma organização familiar da atividade, para outra, de "profissionalização". Mas, até que ponto é possível caracterizar como moderna, cosmopolita, produtora de diversidade e sensibilidades a maior editora do Brasil, cujo trabalho orientado para o sistema educativo repousa, por consequência, no "clássico" e no "nacional", nas vendas em grande escala e no crescimento industrial? No mínimo seria preciso recuperar polaridades estruturais do campo editorial, de onde a Ática poderia extrair qualificações opostas.
Em seguida, Silvia Borelli se esforça para compreender a obra de Marcos Rey e pergunta: que autor é esse? A trajetória do escritor é retraçada e nos mostra suas experiências no rádio, na televisão, no cinema, no jornalismo. Silvia Borelli apresenta Marcos Rey e sua obra como arquétipos pós-modernos: um autor fragmentado em variadas práticas comunicacionais, transitando de gênero em gênero, sob o signo do hibridismo, da desterritorialização.
Solidamente assentado na análise empírica de uma obra, o livro se encerra com o problema literário dos gêneros ficcionais, com a intenção "antropológica" de abordá-los como estruturas cognitivas universais. Na alquimia da relação entre um escritor e um leitor, os gêneros ficcionais emergem como matrizes da imaginação moderna e reforçam identidades num universo de referências. Assim, promovem o encontro do passado com o presente em "um novo processo, denominado por Morin planetarização da energia cultural". Levando ao extremo esta perspectiva, Silvia toma Williams para tratar a cultura como "modo de vida" e os gêneros como ferramentas para desvendar estruturas de sentimento nas relações entre produtores e receptores. Enquanto elementos de mediação, os gêneros permitem resolver o problema central do livro: a superação de dicotomias.
Até que ponto é possível pensar que as relações dos indivíduos com os gêneros, e mais ainda com as obras, se fundam em universais, se as ferramentas para seu reconhecimento estão desigualmente distribuídas entre os agentes? Sob qual ângulo postular estruturas de sentimento comuns entre, por exemplo, um autor "clássico" inglês do século 19, reeditado na Espanha em 1930, e um leitor peruano de 1962?
Para Silvia, a própria noção de gênero deve ser encarada como um modelo em permanente estado de fluxo e redefinição, que permite que na atualidade se opere uma transferência de matrizes originais. Para esta ação, a autora destaca a aventura como elemento essencial da ficção que perpassa a criação literária, desde a novela picaresca do Século de Ouro espanhol até o romance policial. Caraterizando o estilo narrativo de Marcos Rey como expoente extremo de dinamismo, fluidez, de migração e circularidade de gêneros, a autora conclui que não dá para classificá-lo como escritor de narrativas picarescas, de romances policiais ou de aventuras infanto-juvenis. Ação, suspense, emoção perpassam a um autor prototípico que reuniria as propriedades mais universais do "pacto literário". Para Silvia, a obra literária deste autor, "injustamente não galardoada", se apresenta como um tipo-real para desvendar as arbitrariedades classificadoras da literatura oficial.
Conseguindo uma demonstração baseada em uma análise empírica original, este livro pode deixar o leitor ao menos com uma pergunta: a canonização da "grande literatura" é a única força de legitimação dos produtos escritos? A força do econômico, representada pela Ática neste caso, não impõe suas fronteiras? Situado em um pólo do campo literário, Marcos Rey incorpora um "habitus" criador de "outras" arbitrariedades classificadoras que também modelam a imaginação de leitores que, em muitos casos, ainda estão na escola.
GUSTAVO SORÁ é mestre e doutorando pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Folha de São Paulo

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