segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

TERRA IGNOTA - A CONSTRUÇÃO DE "OS SERTÕES"


O estilo do cipó

João Adolfo Hansen

Observou Joaquim Nabuco que o estilo de "Os Sertões" parece escrito com cipós. A observação, feita por um adepto da clareza ática, questiona o estatuto disciplinar e discursivo da obra de Euclides da Cunha. Como o leitor sabe, nela a geometria da ciência racista, aplicada como positividade de fatos, causas e efeitos saturados pela descrição e cópia próprias do determinismo, aparece incongruente, numa linguagem que, desde 1902, já foi classificada de asiática, épica, trágica, barroca, bárbara, barroco científico, expressionista, mau gosto etc. Como diria Nabuco, afinal o que é "Os Sertões"? Ciência? História? Literatura?
"Terra Ignota" de Costa Lima enfrenta a questão de modo deceptivo e polêmico. Avançando resolutamente onde Euclides da Cunha recua, é um livro fundamental, que recorre às recepções da obra, às críticas kantianas, à teoria do romance histórico de Lukács, à sua própria teoria da mimesis e do controle do imaginário, à teoria goethiana de Humboldt, a teóricos do mito e da sociedade contemporânea para tratar de questões deslocadas ou silenciadas na recepção de "Os Sertões". Qual é a especificidade discursiva do texto? Qual é o significado de Euclides da Cunha propor o núcleo mítico do racismo como fundamento transcendente de um processo científico? Qual é a implicação teórico-política da sua proposição de um mito, a essência da nacionalidade? O que é uma teoria não-evolucionista da cultura?
Desde 1902 "Os Sertões" vêm sendo propostos como modelo político, historiográfico e literário. Sua exemplaridade de texto essencial para o conhecimento do país, talvez maior que a de Machado de Assis, é consenso. No entanto, demonstra Costa Lima, o próprio Euclides não determina teoricamente, em sua obra, as relações problemáticas de ciência, historiografia e literatura. É esse posicionamento antiteórico, quando reproduzido nas leituras, que salva o núcleo contraditório do mito nacionalista do texto. O mesmo posicionamento, observável nas apropriações que concebem a linguagem como veículo transparente para a expressão de totalidades pré-formadas, reduz a leitura a um alegorismo ontologista que confunde argumento lógico com ornato retórico.
Segundo Costa Lima, a releitura das matérias transformadas por Euclides permite evidenciar que elimina ambiguidades dos autores que usa por meio de um procedimento sistemático de "biologização", descartando referências que lhe permitiriam criticar o determinismo, como fazia Machado de Assis em seu tempo. Assim, Euclides transforma a "guerra natural" de Gumplowicz num embate de hereditariedades; adapta biologicamente as noções já conservadoras de "imitação", "repetição", "liderança" e "psicologia das massas" de Sighele e Le Bon; faz Maudsley dizer o que não diz; apropria-se etnicamente da noção de "fracasso das religiões gnósticas" de Renan etc.
Aqui, "Terra Ignota" é fortíssimo: deceptivo, desinfla a imagem mítica do autor e da obra reavivada ultimamente em tanta comemoração, evidenciando as limitações de vária ordem que os condicionam; polêmico, fere o nervo do sistema intelectual brasileiro, principalmente a classe dos literatos. Por isso mesmo, talvez a literatura não seja o assunto mais relevante do seu texto. Sua operação é fundamental não propriamente porque desconstrói os pressupostos deterministas do autor de "Os Sertões", operação crítica que, em si mesma, é rotineira. Mas porque, ao fazê-lo, intervém no presente neoliberal dos trópicos, evidenciando que as leituras da obra pelos efeitos, e não pelos pressupostos e procedimentos que produzem os efeitos, é totalmente adequada ao modo conservador de representação do papel do intelectual e do poder político. O programa positivista da Primeira República, como o leitor deve estar lembrado, funda o poder político no conhecimento e fixa a representação do intelectual como um tipo que, porque conhece, domina, prevê e provê. No campo das letras, a antiteoria do autor, explicável historicamente pela certeza determinista, também se reproduz nas recepções como um componente hierárquico do lugar social do intelectual que deixa intocada a montagem do efeito.
Quando demonstra que Euclides subordina o social ao biológico e que a obra afirma a superioridade da raça branca como evidência científica, Costa Lima tem certeza de não estar dizendo nada de original. Mas seu projeto é pensar nos trópicos, ou seja, pensar coisas velhas de modo novo com respostas novas. Se mais uma vez demonstra que o pressuposto racista leva Euclides a propor o soldado prussiano como o tipo ideal que realiza a "Bildung" evolucionista, sabe que diz a ironia depois do nazismo, num tempo horrível em que a normalização geral da miséria também inclui os neofascismos que agora regridem ao que o século 19 produziu de pior. Logo, também quando demonstra que há em Euclides um sentido que se diria "trágico", decorrente do pessimismo quanto à civilização tropical, está atento à permanência, no sistema intelectual do país, da idéia produzida nas leituras da obra nos anos 20 e 30 que foram recicladas na "doutrina da segurança nacional" em 64: a idéia de produzir o Brasil, ou seja, o projeto de produzir um objeto teórico para a intervenção do intelectual que o organiza e controla. Todos os brasileiros somos mestiços, há pouco lembrou um deles; evidentemente -e nesse pormenor deve-se dar razão a Euclides da Cunha-, não os mesmos mulatos.
Como o leitor sabe, apesar da presumida superioridade branca, Euclides julga negativa a europeização do Brasil.

Firmando o cientificismo na transcendência de um mito, a essência racial do país, ou seja, firmando a ciência em algo anterior à experiência, Euclides produz uma contradição. Denuncia o massacre dos sertanejos pelas tropas do litoral mas, porque mantém intacta a tese da inferioridade das sub-raças destinadas fatalmente a desaparecer, a matança só acelera a fatalidade prevista. Mas, principalmente, ao exterminar Canudos, o Exército priva criminosamente a nação da sua alma, a "rocha viva da nacionalidade". Em "Os Sertões" -e esta é a grandeza grandiosa do livro- ela emerge aos cacos, ferocidade pré-cambriana, promessa inominável das manhãs históricas: "terra ignota". E, aqui, a literatura.
Demonstra Costa Lima, a postulação da tese racista faz Euclides aplicar a letra da ciência contra as letras. Seu projeto de "engenharia salvífica" combate a fantasia romântica recalcando a reflexão teórica. Prescrevendo romanticamente o mito racial da "rocha viva da nacionalidade" como remédio contra o romantismo, em "Os Sertões" a ciência marcha adiante de tudo. Principalmente, da teoria de si mesma. O núcleo cego do evolucionismo esbarra o tempo todo, contudo, não propriamente com a realidade desconhecida da terra, do homem e da luta, afinal uma realidade dada a priori na teleologia evolucionista, por isso mesmo realidade pronta a ser reconhecida, ainda quando desconhecida. O racismo esbarra é com ela, a "terra ignota", coisa selvagem que escapa às categorias deterministas, para retornar, na figuração especificamente literária, retórica ou ornamental de "Os Sertões", como o escombro da cena prévia e inclassificável de um recalque, militar e teórico, onde não obstante a vida do país aflora com terrível beleza, pois ainda nem mesmo começou, tal um líquen exterminado da "rocha viva" Grande sertão, a "terra ignota" prolifera, antes de tudo forte, no estilo do cipó. Adeus, Nabuco. Porque não é conhecida, porém, é um apelo imediato ao conhecimento, tal qual é definido no programa do positivismo letrado: base do poder político.
Porque "Os Sertões" continuam sendo, como diz magnificamente Costa Lima, um "grande ornato expandido", alegoria ou metáfora continuada do evolucionismo e das apropriações formadas à sua sombra e que lhe reproduzem o autoritarismo. Aqui, as leituras se abrem: a despeito de Euclides, o livro também pode ser lido contra o determinismo, embora muitos dos resultados das leituras tenham permanecido no seu âmbito político. A descrição apaixonada de Canudos extinguiu de vez a velha noção de uma raça frágil e permitiu, nas duas décadas iniciais deste século, a intensa movimentação das elites no sentido do conhecimento do país interior. Por outro lado, a visão trágica do determinismo também constituiu um desafio formador do intelectual brasileiro: o suicídio de Vicente Licínio Cardoso, em 1931; o civismo, retomado até a última ditadura, são exemplares da continuidade não da tese racista, espera-se, mas dos projetos do tipo "progredir ou perecer" das ideologias de modernização avessas por definição a toda teoria. E com isso tudo, infere-se do apêndice final do livro, "O Pai e o Trickster", a terra que viu Euclides nascer também produz outro "ignoto". A recusa programática da teoria do artifício de como tudo isso se produz é o antiintelectualismo que reproduz o "ignoto", um obscurantismo pesando sobre a "rocha viva da nacionalidade", impedindo o líquen de florescer. É preciso, evidencia, desobedecer ao pai. Matá-lo.
João Adolfo Hansen é professor de literatura brasileira na USP e autor de "A Sátira e o Engenho" (Companhia das Letras)

Folha de São Paulo

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