quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

PRÉ-CINEMAS & PÓS-CINEMAS


Artes da interpretação

Inácio Araujo

A empreitada de "Pré-Cinemas & Pós-Cinemas" consiste em revisar a história "mal contada" do cinema, procedendo a uma redistribuição de pesos e enfatizando o papel do cinema dito primitivo (pré-Griffith) e de certas manifestações em metragem curta, em detrimento da forma industrial ou sonora- assumida pelo cinema, ou seja, sua forma narrativa.
Esse primeiro cinema teria desenvolvido formas não-lineares de narrativa, recalcadas a partir dos anos 1910 pela "linguagem dominante". Essa narrativa não-linear estaria apta a retomar seu lugar, agora que novas técnicas (vídeo, imagem digital etc.) passaram a ocupar parte do espaço que o cinema, até pouco tempo atrás, monopolizava. O pós-cinema nos reservaria, assim, uma revolução destinada a tornar ultrapassadas as imagens baseadas na linearidade e na perspectiva renascentista.
Essa visão supõe dois postulados. O primeiro quer que a instauração da linguagem cinematográfica por Griffith tenha consistido, antes de tudo, numa adequação do cinema a formas artísticas preexistentes, literatura e teatro. Ao decupar a cena, Griffith teria estabelecido uma lógica linear da narrativa. O desmembramento da sequência em planos serviria não só a uma melhor visualização da idéia, mas a criar o sentido a partir de uma sucessão de fragmentos que se desenrolam como um carretel ou uma frase. O segundo, consequente ao primeiro, pretende que o cinema constituiu-se desde então como forma artística atrasada em relação à pintura e à poesia modernas, que naquele instante, anos 1910, já viam o mundo como simultaneidade.
Minha dificuldade em aceitar a primeira formulação vem, em parte, do fato de ela considerar que a evolução do cinema ao classicismo se teria dado por razões primordialmente, senão estritamente, industriais, já que a narrativa griffithiana engendra a expansão do público, tornando o espetáculo aceitável à classe média, que passa então a impor seu gosto. Com isso, o cinema teria recuado de um primeiro sopro de criação visionário à categoria de máquina de contar histórias antiquadas.
Observando o cinema primitivo e comparando ao clássico, no entanto, é preciso admitir que o horizonte do cinema expandiu-se no segundo período. A simultaneidade do "quadro confuso" que Arlindo exalta nos primeiros filmes condenava o cinema a situações restritas no tempo e no espaço. Era a "invenção sem futuro" dos Lumière. Não me parece evidente, também, que a narrativa clássica submeta-se à narrativa literária, de Dickens ou não. Para que isso acontecesse, seria preciso que o cinema se dispusesse exclusivamente no tempo, e não no espaço, o que não é o caso. Por fim, também não me parece claro que a decupagem seja uma conquista da classe média. Do ponto de vista estritamente industrial, a adesão desse público "bem-pensante", com perda do público popular seria um retrocesso impensável nos anos 1910.
Nesse sentido, me sinto mais atraído por Erwin Panofsky, quando julga, no ensaio "Estilo e Material no Cinema", que em vez de romper com a tradição popular a evolução que se verifica nos anos 10 tende a reforçar o caráter popular do cinema, ao explorar "as possibilidades únicas e específicas do novo meio de expressão". Daí Panofsky julgar que "o material do cinema é a realidade física em tanto que tal" e que "o cinema, só ele, faz justiça à concepção materialista do universo", o que o leva a assinalar o limite das tentativas que visam pré-estilizar o mundo, como "O Gabinete do Dr. Caligari", de Robert Wiene (1919).
O certo é que, se a forma clássica se impôs, terá sido menos por razões de natureza industrial do que pela percepção de que o primeiro cinema era, essencialmente, limitativo do espaço-tempo. Podemos apreciar alguns de seus procedimentos e na verdade a decupagem clássica não nos impede de retomá-los. Ela acrescenta novos recursos ao cinema, mas não subtrai nenhum dos existentes anteriormente. Estou pronto a concordar que a indústria tentou confinar a decupagem clássica, transformando-a em regra, em academismo. Mas também é verdade que não faltaram cineastas (mesmo no sistema de estúdio) para romper com essas barreiras.
A questão do atraso do cinema em relação às demais artes modernas -que constitui o segundo postulado deste livro- talvez seja mais de ordem psicológica que estética. Designa uma espécie de complexo frequente no fã de cinema em relação às artes mais antigas, desconsiderando que aceder à modernidade, para elas, é todo um problema, enquanto o cinema é naturalmente moderno. Não lhe cabe pensar a simultaneidade, que está inscrita em seu discurso, no interior do quadro ou na articulação som-imagem.
A partir daí, parece-me bem mais plausível a teoria esboçada por Eric Rohmer no recente "Mozart em Beethoven" ( Imago), para quem cada arte possui um desenvolvimento próprio. O fato de o barroco musical preceder o classicismo, ao contrário do que ocorre na pintura, não indicaria, então, avanço ou atraso. Da mesma forma, o fato de o cinema conhecer seu classicismo no momento em que as outras artes estão na ponta da modernidade não indicaria atraso. Sua natureza, antes, é que nos manteria "no raso das aparências", não fosse a capacidade do artista "pela reprodução exclusiva da aparência, de encontrar, paradoxalmente, a coisa em si no seio do fenômeno", como diz Rohmer.
Com sensibilidade bem distinta, Arlindo Machado parece se entusiasmar pelo espetáculo cinematográfico bem menos que pelas imagens de vídeo ou computador, às quais credita a possibilidade de interferência direta do artista na imagem (pela distorção, por exemplo) e mesmo o fim da "fatalidade figurativa" do cinema. Resumindo, o cinema (entendido como a arte de Griffith) seria antes de tudo um incômodo passageiro, separando pré e pós-cinema, sendo que este, em seus desdobramentos, nos levaria à integração do cinema às artes plásticas.
Mesmo nesse âmbito, no entanto, conviria perguntar qual o futuro dessa associação. As artes plásticas têm sobrevivido muito bem até aqui sem o cinema (em parte graças ao fato de o cinema liberá-las da representação figurativa). Já ao cinema, o que lhe restaria, ao abrir mão de sua natureza, exceto tornar-se uma "quase arte plástica"?
Ao recontar a história do cinema, Arlindo Machado inclui um viés finalista que se fundamenta, quer me parecer, na inferioridade e no atraso do cinema em relação às "grandes artes". É uma questão de ponto de vista: pessoalmente, parece-me que o cinema se justifica justamente por esse atraso suposto, por sua modéstia diante das coisas. As artes anteriores ao cinema são artes da interpretação, interrogam o mundo a partir de uma intervenção humana, enquanto no cinema é o mundo, em sua objetividade, que se interroga, mais que o artista (como vemos nos filmes de Kiarostami, por exemplo). E é o mundo que se revela e entrega seus encantos, por meio do artista. Nas artes plásticas, como na escrita, o sujeito é o aspecto central, enquanto no cinema o objeto é esse centro.
Estou longe de desprezar os avanços da tecnologia digital, mas por julgar que ela acrescenta algo ao domínio das aparências pelo cinema. Ao mesmo tempo, não me sinto convencido das vantagens de apagar os limites entre cinema e outras artes, nem de que os ganhos possam compensar a supressão de uma arte cujo interesse consiste justamente em tomar o partido das coisas e captar a superfície do mundo, devolvendo ao espectador a possibilidade única de contemplar a semelhança entre o ser e sua imagem -como sugere Bioy Casares em "A Invenção de Morel".
Inácio Araujo é crítico de cinema
Folha de São Paulo

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