domingo, 22 de fevereiro de 2009

Philosophie de la légèreté


PONTON, O. Nietzsche – Philosophie de la légèreté. Berlin; New York: Walter de Gruyter, 2007. (Monografhien und Texte zur Nietzsche-Forschung, Band 53).
Jelson Oliveira
Doutorando em filosofia pela UFSCar, Professor de filosofia da PUCPR, onde é membro do
Grupo de Estudos Nietzsche. Curitiba, PR - Brasil, e-mail : jelsono@yahoo.com.br


O livro do filósofo francês Olivier Ponton, recém lançado pelo renomado editor alemão Walter de Gruyter, chega às mãos dos interessados na filosofia de Nietzsche com uma convicção inicial: a de que existe uma moral em Nietzsche e que essa moral está baseada numa filosofia da leveza.
Dividida em cinco capítulos, a obra de Ponton apresenta com detalhes e minúcias que só um especialista conseguiria desvendar, de que forma essa busca pela leveza caracteriza-se não como uma tentativa de aliviar da vida, mas de aliviar a vida, através do fortalecimento das forças humanas. Não se trata, portanto, de uma leveza que pretende retirar ou anular o peso da existência, mas de ajudar a fortalecer no homem as forças capazes de suportálo. O que é leve e o que é pesado, portanto, dependeria das condições da força capaz de suportar esse peso. É isso o que, no limite, transforma a leveza, segundo Ponton, no critério básico da moral nietzschiana: aliviar a vida seria uma forma de tornar o homem capaz de suportá-la e nisso, a moral teria um papel preponderante.
Assim, ao contrário da moral cristã (também representadas por Shopenhauer e Wagner), a nova moral de Nietzsche (caracterizada como um “novo evangelho” da inocência do devir e da irresponsabilidade total das ações humanas, consideradas por Nietzsche como necessárias) é uma moral que ajuda a fortalecer o homem a partir da afirmação de si mesmo, do amor fati, para que ele suporte o peso (o peso das coisas revela a sua intensidade) de forma ativa e não, como no caso do asno e do camelo (figuras presentes na parte I, do capítulo “Das três metamorfoses”, de Assim Falou Zaratustra), como gesto passivo de aceitação do peso da existência.
Guiado pela tese de que essa nova tábua moral se efetiva a partir do chamado segundo período da produção nietzschiana, mais especificamente através da obra Humano, demasiado humano, o livro de Olivier Ponton mostra de que forma essa tese da leveza se contrapõe especialmente às formulações morais de Schopenhauer. Segundo ele, isso se efetiva a partir da afirmação de si mesmo e do amor ao “real”, despertado pela tarefa “científica” experimentada por Nietzsche nesse período de sua produção como estratégia de uso daquilo que o filósofo alemão chama de “filosofia histórica” e que inclui uma perspectiva psicofisiológica, para desmontar a estrutura dos ideais metafísicos, religiosos e artísticos. Assim, Humano, demasiado humano é apresentado como uma obra capital para a compreensão da moralidade de Nietzsche, fato que comprova a
originalidade do livro de Olivier Ponton, já que sobre esse período dos escritos nietzschianos pairam não poucas incorreções interpretativas e muitas negligências por parte dos comentadores, os quais o interpretam quase como um “parêntese” dentro do conjunto da obra do filósofo alemão. Ao usar o seu método científicoexperimental contra a religião cristã, a arte romântica e a filosofia metafísica (respectivamente representadas pelo homem santo, o gênio romântico e o filósofo), Nietzsche transforma essa obra num prelúdio da genealogia que se constituirá como método de análise da moral nos escritos de maturidade.
Assim, a obra de Ponton se articula a partir de concepções fundamentais da filosofia de Nietzsche que são apresentadas a partir de Humano, demasiado humano: a doutrina da inocência do devir, da liberação do espírito, da crítica ao romantismo e à metafísica, da doutrina das coisas próximas, da aspiração genealógica, da análise do ascetismo e da santidade, da reabilitação da vaidade, da ambição, do egoísmo e da vontade de poder. Como se sabe, essas concepções apresentar-se-ão, de ora em diante, como condição para o surgimento dos temas de maturidade do pensamento de Nietzsche: morte de Deus, eterno retorno, amor fati e vontade de poder.
Partindo de um detalhado exame daquilo que ele chama de “leveza grega”, Ponton analisa a compreensão de Nietzsche a respeito do realismo poético dos gregos e sua concepção sobre os “deuses de vida fácil”, bem como da “descarga” trágica da catarse e do canto coral. A afirmação
nietzschiana da música e da arte gregas como formas de alívio da existência e da própria experiência existencial ática como “vida fácil” teria sido, segundo Ponton, derivada por Nietzsche das ideias de Jacob Buckhardt, apresentadas nos seus cursos sobre a história da cultura grega, a partir de 1872. Nietzsche, entretanto, não tivera acesso a essas aulas e nem ao livro Griechische
Culturgeschichte, publicado somente após a morte de Buckhardt, em 1899. Assim, foi através das anotações de seu colega professor da universidade de Basileia, Loius Kelterborn que Nietzsche, em 1875, teve contato com as ideias de Buckhardt. Os cadernos de Keterlborn, aliás, estão por trás de muitas concepções presentes nos fragmentos que formam o esboço de obra intitulado Nós filólogos,1 já que esses escritos foram lidos e discutidos em Sorrento, na
vila Rubinacci, com Malwida von Meysenburg, desde 1875. Nessas anotações, Buckhardt assinala a importância da vida fácil ou leve (leicht) dos deuses gregos, já que eles não exigem penitência e nem redenção, portanto, deixam o homem livre em sua inocência, pois sua experiência religiosa está baseada numa livre poetização que se contrapõe ao dogmatismo cristão e conduz os
deuses de Homero a uma “vida fácil”, definida pela beleza, o exercício livre de seu poder e sua simplicidade. São esses elementos que fazem imortais e joviais os deuses gregos, espelho brilhante das coisas humanas, demasiado humanas. Vivendo essa beleza, inocência e simplicidade, os deuses homéricos seguem as leis da Moira e da natureza, com um invejável realismo poético perdido pela cultura ocidental posterior. É assim que as coisas humanas se tornam leves e isso só poderá ser realizado a partir da proposta nietzschiana de uma inversão do platonismo, tema do segundo capítulo da obra de Ponton, com o qual o autor destaca a proposta de reabilitação das coisas humanas, desvalorizadas pela invenção do dualismo platônico. Humano, demasiado humano representaria, assim, uma mudança radical em relação à perspectiva filosófica praticada por Nietzsche no primeiro período de sua produção, o que se revela mesmo no título da obra:
Menschliches pode ser usado como tradução do grego ta antrôpina, que significa as “coisas humanas” recusadas por Platão na República (X, 604 b-c) e nas Leis (VII, 803b), como indignas de qualquer “seriedade” para o alcance da verdade.
Nietzsche, ao recuperar o que foi negligenciado pelo platonismo, associa a sua obra a uma inversão da teoria platônica mostrando que a desrazão e o ilógico das coisas humanas (ideias associadas ao devir, também ele recusado por Platão) fazem parte da constituição da vida e lhe doam seriedade, malgrado ela continue sendo caracterizada como um jogo infantil. Ora, essa afirmação leva à concepção da inocência do devir e da teoria da radical irresponsabilidade das ações humanas, tema do terceiro capítulo de Nietzsche – Philosophie de la légèreté, no qual Olivier Ponton faz um trabalho detalhado e cuidadoso de identificação das contraposições de Nietzsche às rescindidas teses de Schopenhauer, a começar pelo menosprezo de si (patamar sobre o qual a religião se ergue ao possibilitar um falso alívio, um narcótico para a culpabilização do eu), a crença na redenção, fuga da dor (pelo pessimismo romântico) e corrupção das coisas humanas através das invenções psicológicas que cria doentes imaginários aos quais ela mesma oferece narcóticos que não curam, mas ampliam a doença. Assim, adiantando as teses de Para uma genealogia da moral, o ascetismo e a santidade são analisados como formas psicológicas de adoecimento do homem. Esses elementos servem, de forma oposta, para a constituição da própria moral nietzschiana, na medida em que o filósofo alemão faz nascer de sua crítica a afirmação das coisas humanas através de uma filosofia da reinterpretação, da revalorização e do ultrapassamento. Para Ponton, Humano, demasiado humano é, a um tempo, um laboratório genealógico que desvenda o perspectivismo de todas as configurações morais e um terreno experimental sobre o qual se ergue o edifício da filosofia do espírito livre e do “novo evangelho” da inocência e da leveza, contrário àquele da culpa, do pecado e da redenção. O quarto capítulo da obra de Ponton se intitula O embelezamento da vida e surpreende pela coerência argumentativa e pela profundidade da análise, ao contrapor a ideia de produção artística e de homem como obra de arte, frequente no pensamento de Nietzsche, à afirmação contrária, presente em Schopenhauer, na perspectiva da imutabilidade do caráter.2 Assim, a leveza da
vida estaria garantida pelo seu valor artístico, poético e “mentiroso” que faz “dançar sobre o abismo”. E esse é, justamente, o tema da última parte desse belo livro de Olivier Ponton (capítulo intitulado A liberação do espírito), quando os homens conquistam aquela leveza dos deuses gregos e sua “vida fácil”. Nessa parte da obra, Ponton trata da busca de Nietzsche por um “claustro para espíritos livres” e uma comunidade de amigos que partilham esses mesmos conceitos afirmativos e alegres da vida.


1 Esses escritos de 1875, foram a quarta Consideração extemporânea, intitulada Nós filólogos,
a qual Nietzsche preparara nessa data mas se recusara a publicar, conforme assinala Mazzino
Montinari, na quarta seção da sua Kritische Gesamtausgabe.
Revista de Filosofia Aurora

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