segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

NATURALISTA


Pequenas criaturas

Renato Da Silva Queiroz

Edward Wilson, professor em Harvard e curador do Museu de Zoologia Comparada desta mesma universidade, é hoje mais conhecido em certos círculos como o autor do polêmico "Sociobiology" (1975) do que pelos seus magníficos trabalhos no domínio da entomologia. Bastaria evocar aqui, a título de exemplo, os louros que lhe cabem pela descoberta de estruturas glandulares e certos tipos de secreções químicas -"ferormônios"-, que viabilizam a comunicação entre as formigas, descoberta que constitui, desde o final da década de 50, um "abre-te-sésamo" no campo das pesquisas sobre comportamento animal.
Com o volumoso "Sociobiology", Wilson pretendia estabelecer as bases biológicas para o estudo sistemático do comportamento social. Para tanto, escreveu 27 capítulos, "um levantamento enciclopédico dos microorganismos e animais sociais, com a informação organizada de acordo com os princípios da teoria evolucionária". Apenas o último capítulo ficou reservado às contribuições das ciências sociais, interpretadas por ele à luz de hipóteses sobre os fundamentos biológicos do comportamento humano. Foi o suficiente para desencadear uma enorme controvérsia nos meios acadêmicos, sobretudo em Harvard, bipartindo-se então as opiniões entre os defensores da nova teoria e os que a acusavam de acalentar nas entranhas um indisfarçável determinismo genético.
A reação à teoria sociobiológica foi tão intensa que, por ocasião da reunião anual da Associação Americana para o Progresso da Ciência (Washington, 1977), manifestantes subiram ao palco no momento em que Wilson ia dar início a uma conferência, todos cantando "Você está errado, Wilson, vamos pôr água na fervura" e, ato contínuo, despejaram-lhe um jarro de água gelada na cabeça.
Em "Naturalista", Wilson evoca sucintamente esse conturbado período, reservando à controvérsia sociobiológica somente dois de seus 18 e extensos capítulos. Nos demais, deixa transparecer a sua fecunda trajetória acadêmica de pesquisador fascinado pelo mundo natural. Revela-se aqui a extrema importância que Wilson concede aos seus trabalhos no domínio da entomologia, com os quais abocanhou o título de autoridade maior no estudo de diferentes espécies de formigas e de seu intrincado comportamento social.
Homem reservado, partilha com o leitor discretas memórias de infância, apenas as indispensáveis para se avaliar a natureza dos sentimentos que o aproximavam dos animais que então o rodeavam. De fato, em meio a um período de turbulência familiar, despontava no introspectivo garoto o gosto pela observação da vida animal: "Na idade de sete anos, acho-me em pé no raso de Paradise Beach, olhando para uma imensa água-viva no mar tão tranquilo e claro que todos os seus detalhes se revelam como se ela estivesse aprisionada em vidro".
Da infância em Paradise Beach, Wilson nos conduz à Universidade do Alabama, onde se formou em biologia e deu início aos estudos pós-graduados. Evoca os autores marcantes na biologia daquela época -E. Mayr, J.B.S. Haldane, R. Fisher, T. Dobzhansky, G. Simpson e muitos outros-, assinalando a poderosa influência que exerceram em sua formação científica, como de resto sobre toda uma geração de notáveis cientistas, brasileiros inclusive.
Após uma passagem relativamente efêmera pela Universidade do Tennessee, Wilson transfere-se para Harvard, instituição que lhe conferiu o título de doutor e à qual vinculou-se em seguida como professor. "Naturalista" oferece-nos um panorama muito bem tecido do ambiente acadêmico em Harvard nas décadas de 1950 a 1980, com destaque para a atuação de algumas personalidades notáveis e polêmicas, tais como J. Watson, co-descobridor da estrutura do DNA, defensor ferrenho da biologia molecular e refratário à então incipiente ecologia, e S.J. Gould, cujas posições foram contrárias à sociobiologia, entre tantos outros.
Wilson ressalta os seus trabalhos de campo, descrevendo as inúmeras expedições científicas que o levaram a áreas remotas de quase todos os continentes à procura de novas espécies de formigas. "Serei de coração, até a morte, um naturalista explorador", escreve ele ao final do livro, e com razão, pois os seus mais penetrantes "insights" e as suas hipóteses mais promissoras lhe ocorreram graças à familiaridade que foi conquistando, ao longo das décadas de perseverante observação, com os pequenos seres que ainda hoje o fascinam.
O notável "experimento de Florida Keys", projetado por Wilson, constitui talvez o estudo de biogeografia insular mais ambicioso e original já realizado, pois envolveu a desfaunização deliberada de uma pequena ilha, a fim de melhor compreender como se processa a recolonização de áreas afetadas por algum tipo de catástrofe natural (erupções vulcânicas, furacões etc.) e como é retomado o equilíbrio entre diferentes espécies animais que passam a repovoar a área atingida.
Sabedor de que o planeta encontra-se cada vez mais ameaçado pela destruição de habitats naturais, com a dramática redução da diversidade genética que acompanha a extinção de numerosas espécies, Wilson engajou-se abertamente nos debates em torno de questões ambientais. Esse papel de "ativista ambiental" cabe-lhe com perfeição, pois, além do saber acumulado ao longo de décadas de trabalho criativo no campo da biologia, não lhe faltam o amor devotado às pequenas criaturas nem a habilidade de se fazer entender com elegância e clareza.
Renato da Silva Queiroz é professor do departamento de antropologia da USP.

Folha de São Paulo

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