quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

FRONTEIRA - A DEGRADAÇÃO DO OUTRO NOS CONFINS DO MUNDO


Lugar da morte e do renascimento

Regina Novaes

Uma vez um desconhecido agarrou-me e tentou esfaquear-me: ele pensou que eu fosse a pessoa a cuja casa me dirigia e onde me hospedaria, pessoa ameaçada de morte por seu envolvimento, na região, com lutas indígenas e camponesas pela terra e por oposição à ditadura."
Quem fala é José de Souza Martins. Esta foi uma, entre várias outras situações de intimidação sofridas pelo autor, no Norte do país, em regiões de fronteira, nos estados de Mato Grosso, Pará, Maranhão, Rondônia, Acre, Amazônia, Goiás e o atual Tocantins. Os episódios vividos por esse docente e pesquisador da USP, não aconteceram ao acaso, não são fruto de contingências singulares, mas constituem componentes reveladores dos processos sociais estudados. Isto é, revelam características do cenário altamente conflitivo, desenhado pela maneira violenta com que se deu a expansão da sociedade nacional sobre territórios ocupados por índios, caboclos e pequenos agricultores.
Ao mesmo tempo, os episódios de adversidade relatados documentam vivências de um pesquisador "lançado numa situação um pouco parecida com a da pesquisa experimental, sendo ele próprio parte do experimento". Deixando de lado a pretensa neutralidade científica, o autor optou "por assumir abertamente, ainda que criticamente, o lado da vítima, pois esse era o ângulo mais rico (e moralmente mais justo) para compreender de modo mais abrangente os complicados processos sociais de fronteira e a complexa inteligência que tem da situação os seus protagonistas".
A esta opção o autor adicionou mais um componente. Desenvolveu uma técnica por ele nomeada de "pedagogia investigativa" que, para além de permitir acesso às informações para a pesquisa, permite que se estabeleça uma troca. Martins afirma: "Optei por pesquisar ensinando o que sei e aprendendo o que não sei". Mas, com seus mais de 20 anos de pesquisa na área, o autor não idealiza esta relação de troca. Reconhece as ambiguidades e os paradoxos inerentes às posições e situações de classe e às diferenças culturais existentes entre pesquisador e atores pesquisados. Ciente disso, expressa assim os limites de sua expectativa: "Penso que foi possível atenuar a possibilidade de nos enganarmos reciprocamente, ainda que involuntariamente".
Contudo, estas opções de Martins não o dispensaram da busca sistemática de informações, a serem transformadas em dados analíticos, a partir de academicamente reconhecidos pressupostos de rigor metodológico. Nos quatro estudos reunidos no livro, o leitor poderá observar, além da pesquisa documental e de uma extensa bibliografia, também uma boa e criativa conjugação entre as chamadas técnicas qualitativas e quantitativas de pesquisa.
No primeiro estudo, o foco recai sobre os efeitos das frentes de expansão sobre territórios indígenas. Um aspecto em particular é colocado em evidência, a saber, a questão do rapto de mulheres e crianças, seja pelos grupos tribais entre si, seja pelas tribos indígenas em relação aos regionais, seja pelos regionais em relação aos índios. Raptos poderiam ser pensados como resultados de desencontros culturais desencadeando vários tipos de "colonização". Com efeito, em situações históricas diversas, datadas entre 1877 e 1984, o autor documentou e analisou 150 ocorrências que têm algo em comum: os embates entre vencidos e vencedores mutuamente os desumanizam.
O segundo estudo, foi intitulado "A Reprodução do Capital na Frente Pioneira e o Renascimento da Escravidão". Nele o autor analisa a atual discussão sobre trabalho escravo no campo. Retomando estudos clássicos, insere esta categoria no âmbito da ampla e complexa diversidade de características das relações de trabalho na sociedade capitalista.
A questão das fontes, aceitáveis e respeitáveis, do dado sociológico também está presente no terceiro estudo. Logo de início, o autor afirma que as ciências humanas, com a possível exceção da antropologia, não têm sido capazes de decifrar o silêncio das mulheres, das crianças, dos velhos, dos agregados da casa, dos dependentes, dos que vivem de favor. Buscando romper barreiras de silêncio, em "Regimar e seus Amigos - A Criança na Luta pela Terra e pela Vida", as informações são provenientes de entrevistas gravadas e quase duas centenas de depoimentos escritos pelas próprias crianças e adolescentes. Entre os entrevistados está Regimar, cuja história de vida torna-se um ancoradouro "bom para pensar", para usar a clássica expressão de Lévi-Strauss, sobre o que é ser criança num espaço social que se constrói entre conflitos armados entre posseiros e grileiros. A fala desta menina, descrita como "miúda e arrumadinha", põe em relevo o fato de a migração não se justificar apenas pela busca de terra, mas também, e simultaneamente, se justificar pela fuga da humilhação sofrida no presente. No passado e no futuro, busca-se um lugar que seja "bom para o pobre viver sua pobreza".
"O Tempo da Fronteira - Retorno à Controvérsia sobre o Tempo Histórico da Frente de Expansão e da Frente Pioneira" é o nome do último estudo do livro. No título já está anunciado seu caráter polêmico. Uma destas polêmicas diz respeito às "concepções de direito" que prevalecem entre camponeses nas frentes de expansão. Sobre este ponto, o autor reproduz, num longo pé de página, perguntas e respostas que fazem parte de uma entrevista feita pela antropóloga Leonarda Musumeci ( em "O Mito da Terra Liberta", Anpocs/Vértice). A meu ver, a possibilidade da discordância e de explicitação de divergências de interpretação, neste caso, se faz possível porque a autora não se esconde atrás das informações mas, ao contrário, descreve seus procedimentos metodológicos e se expõe ao crivo e à crítica dos leitores. Pesquisadores desse tipo são os que chegam a ser considerados por seus pares como interlocutores com os quais vale a pena discordar. Este é apenas um exemplo. O que já indica que há neste artigo algumas daquelas boas controvérsias que fazem caminhar as ciências sociais.
Aliás, em todos os artigos do livro, o autor não economiza na explicitação de controvérsias. Em doses apropriadas, Martins indica a complementaridade ou dissensão entre pesquisas e pesquisadores, aponta as semelhanças e as diferenças entre fontes e procedimentos metodológicos, analisa pontos de vista dos diferentes personagens. É esta a matéria-prima que garante sua riqueza interpretativa.
Por esta via, alimentado pelas polêmicas que caracterizam o debate acadêmico e reunindo sua bagagem de muitos anos de um tipo de imersão pessoal no trabalho de campo, é que Martins constrói a idéia-força do livro. Nela a fronteira é apresentada como lugar privilegiado de observação sociológica e de conhecimento dos conflitos e, também, das dificuldades da constituição da "humanidade do homem". A fronteira revela-se, então, como o território da morte e o lugar de renascimento e maquiagem dos arcaísmos mais desumanizadores, cujas consequências não se limitam a seus protagonistas mais imediatos.
A rigor, o livro faz pensar que a violência e a intimidação que se evidenciam nas situações estudadas extrapolam os limites geográficos e a experiência direta de seus habitantes, dos "chegantes" ou dos que pesquisam na área. Dizem respeito a todos. Mais do que revelar, portanto, os mecanismos de exploração do trabalho alheio, os expedientes de especulação fundiária ou apontar para evidentes manifestações de etnocentrismo cultural, o encontro e a combinação entre tempos históricos e processos sociais, que caracterizam os espaços de fronteira, põem a nu as fronteiras do humano. Trata-se, sem dúvida, de um livro instigante e de um interlocutor legitimado pela coerência de sua obra.

Regina Novaes é antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo

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