sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

O "URAGUAI" E A FUNDAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA

"O Uraguai" através dos tempos
09/Mai/98
Alcir Pécora
VÂNIA CHAVES /AUTORA/; O "URAGUAI" E A FUNDAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA

O Uraguai" através dos tempos
ALCIR PÉCORA
este trabalho de Vânia Chaves é o primeiro volume de sua tese de doutorado defendida na Universidade de Lisboa, em 1990. Constitui um tremendo esforço de levantamento e estudo da recepção crítica e intertextual do poema "O Uraguai" (1769), de José Basílio da Gama (1741-1795). Como é sabido, a epopéia celebra a expedição de Gomes Freire de Andrade à frente de uma força luso-espanhola destinada a fazer cumprir o Tratado de Madrid (1750), em que Portugal cederia à Espanha a colônia de Sacramento e receberia o território dos chamados Sete Povos das Missões, obrigando as aldeias jesuíticas a mudar-se dali. A recusa custou-lhes, para ficar nos números da batalha de Caibaté, a morte de 1.400 índios e a prisão de 127, em uma hora de combate, para um morto português e dois espanhóis. O poema polidamente emudece a respeito.
Vânia inicia sua história de leituras de "O Uraguai" pela "autocrítica" basiliana, com a carta que o poeta envia a Metastasio, em 1760, presenteando-o com a obra de tema "tutto americano". Também examina o parecer da Real Mesa Censória sobre o poema, assinado por Azevedo Coutinho (1769), que lhe aponta certos defeitos, em parte decorrentes da própria dificuldade da poesia épica, mas ressalta-lhe qualidades superiores, reveladas em "imagens magistrais", sobretudo na confecção do episódio de Lindoya. Em 1786, o livro recebe o contra-ataque jesuítico: a "Resposta Apologética" do padre Lourenço Kaulen denuncia o uso por Basílio de fontes mentirosas, como a "Relação Abreviada" (1757) e a "Dedução Cronológica e Analítica" (1767-68), forjadas pelo Estado português como peça da campanha internacional que movia contra os jesuítas. Basílio era dado como cúmplice dessa campanha e desqualificado como um "papagaio do Brasil", dono de um caráter indigno, que traía sem pudor a Companhia que antes o acolhera.
Ao fim do século 18, as críticas apresentam oscilações, como mostra Vânia, sobretudo no tocante à definição de seu gênero, caracterizado como épico, épico-lírico e mesmo satírico ou dramático, variando também as hipóteses sobre quais seriam os principais protagonistas: Pombal, Andrade, os jesuítas ou os índios. Com a queda do marquês, decaiu a sua recepção em Portugal e tornou-se predominante a de seus conterrâneos do Brasil, destacando-se os poemas que lhe dedicaram Silva Alvarenga e Alvarenga Peixoto.
No século 19, com a independência política do Brasil, a leitura brasileira e a portuguesa tomam rumos distintos. Em Portugal, Vânia aponta Garrett como principal interlocutor de Basílio. O seu "Bosquejo da História da Língua e da Literatura Portuguesa" (1826) dá-lhe destaque na produção árcade dos brasileiros, a qual incorpora (para mim, muito acertadamente, mas não para Vânia, que o julga contraditório) à história literária de Portugal, ao mesmo tempo em que vê no "Uraguai" certo "espírito nacional", mas "sufocado pela educação européia". O segundo modelo decisivo da leitura de Basílio, no início do século, é fornecido por Ferdinand Denis, cujo "Resumé de la Histoire Littéraire du Brésil" (também de 1826) concede-lhe lugar-chave na evolução para uma "literatura nacional", dado seu "indianismo" e gosto pela "natureza americana".
No Brasil, no mesmo período, houve oito reimpressões do poema, e consagraram-lhe páginas reconhecidas Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias, Alencar, Machado, entre outros, destacando-se como razões de sua estima o que nele julgavam revelador de marcas de nacionalidade ou de elementos biográficos e psicológicos. Permaneciam as divergências sobre o gênero épico ou não do poema, assim como sobre a natureza efetiva ou não de sua "brasilidade". Ao fim do século, a principal leitura do poema é a de José Veríssimo, que reconhece nele, assim como no "Caramuru" (1781), de Santa Rita Durão, o cumprimento da exigência épica de manter uma relação essencial com o momento histórico. De resto, entende-o como próprio do espírito brasileiro anterior à Inconfidência, em que aparece já um sentimento de igualdade em relação à metrópole, mas sem desejo ainda de independência política, de tal modo que seu interesse mais imediato era agradar Pombal. Também valoriza o que chama seu feitio original face ao modelo camoniano, decorrente menos da vontade de inovação que da inadequação do assunto aos moldes clássicos, e resultando disso, enfim, o "primeiro poema romântico" português. Nesse sentido, louva-lhe ainda a introdução no modelo épico de elementos originais da América, como a natureza, os índios e seus costumes, gerando assim uma "primeira poesia americana".
Passando ao século 20, a tendência portuguesa é desinteressar-se pelo poema, repondo uma recepção semelhante à do 19, em que o "Uraguai" é incorporado à literatura portuguesa árcade, numa posição de mediano relevo, tendo como méritos principais a "cor" americana, caracterizada pelo assunto, a natureza e o índio, e a inovação do gênero épico. Já no Brasil, as alterações são mais profundas: até o predomínio modernista, o poema segue com boa presença no mercado editorial, com três edições em circulação. Com os modernistas, contudo, Vânia aponta uma "quebra do prestígio", citando-o apenas Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida, para destacar-lhe seu "sentimento nacional". A essa indiferença segue-se a hostilidade manifesta na celebração do bicentenário do nascimento de Basílio realizada pela Academia Brasileira de Letras, em 1941. Clóvis Monteiro e Afrânio Peixoto censuram-lhe a postura antijesuítica e o mau-caráter, negando-lhe tudo o que se considerava mais meritório no poema: brasilidade, indianismo, originalidade face a Camões ou ao arcadismo italiano e, enfim, recusando-lhe o romantismo. O que, para mim, mas não para eles, nem para Vânia, parecem críticas que soam como enormes vantagens do poema.
Na década de 50, algumas leituras importantes da obra são analisadas por Vânia, como as de Sérgio Buarque e de Antonio Candido. Este vê no poema uma matéria lírico-heróico-didática com "disfarce épico", na mesma linha de suas outras leituras de árcades pelas quais nutre maior simpatia, ou seja, em que julga reconhecer maior distanciamento da convenção árcade e maior densidade subjetiva ou socionacional. Também valoriza o que pensa ser uma substituição mais original e realista do pastor árcade pelo rústico indígena. Já Sérgio Buarque acentua o parentesco do "Uraguai" com a epopéia italiana e, em particular, com o modelo de Tasso, assim como seu caráter simbólico de luta das Luzes contra a ignorância; também destaca seu interesse imediato e encomiástico, mais que histórico, caracterizando-o como uma "epopéia de circunstância".
A conclusão do exaustivo exame das leituras do poema é que a questão da brasilidade constitui o "fulcro controverso da sua trajetória no espaço literário português e brasileiro". E, embora a interpretação pessoal da autora não se dê neste volume, há nele pistas claras de sua tendência para valorizar o que, no "Uraguai", representa um passo decisivo, fundante, de um "processo de gestação" colonial da literatura brasileira. Isso, a despeito do que entende como "ambiguidades" do poema, que "justifica a empresa colonial civilizadora" e, ao mesmo tempo, valoriza "as gentes e o universo em que se implantou".
Até onde vejo, porém, esta concepção do problema tem contra si dois argumentos fortes. Primeiro, o que quer que se entenda por processo de "formação" orienta para a descoberta de um sistema de práticas de cultura muito útil para a descrição de questões lançadas coerentemente apenas no século 19; logo, se é legítimo buscá-lo, não se pode pretender que descreva bem aquilo mesmo que apenas dilui, por predomínio de novos interesses intelectuais. Assim, no século 19, ou mesmo no 20, foi importante a descoberta de um específico nacional que se associava a um modelo de maior prestígio internacional, capaz de tornar subalterna a referência portuguesa na constituição dos paradigmas literários brasileiros: isto fez parte das "provas" que autorizaram a sua substituição por balizas italianas ou francesas, de feitio menos beato e mais moderno. Tomar a "gestação" literalmente, e não como argumento útil a posteriori, é fazer do processo a alegoria de uma substância a-histórica, "a brasilidade", que hoje tem no máximo uma utilidade turística.
O segundo ponto a considerar é que o foco da atual renovação dos estudos coloniais está posto na descoberta do funcionamento de um modelo histórico dominante no momento daquela produção (o da unidade teológico-retórico-política), que foi deixado de lado pela investigações prioritariamente interessadas em produzir o autônomo nacional. Vale dizer, para mim, o que faz a graça dos estudos coloniais é a vontade de descrever mecanismos verossímeis não-nacionais (embora com aplicações específicas nas diferentes regiões ou países), classicizantes (vale dizer, não puristas e favoráveis à geração de gêneros mistos), convencionais (mas não "disfarces", e sim signos de uma economia artística produtiva) e artificiosos (mas não "fora-de-lugar", antes, funcionais como modos de inserção na hierarquia social e letrada da colônia).

Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade de Campinas (Unicamp) e autor de "Escritos Históricos e Políticos do Padre Antonio Vieira" (Martins Fontes).


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