quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

AMILCAR DE CASTRO

A precisão do risco
11/Jul/98
Iole De Freitas
Caderno Especial

ALBERTO TASSINARI
Na Europa e nos EUA, os livros que documentam a obra de autores-chave das artes visuais e trazem ensaios de profundidade sobre elas são um item corrente da produção editorial. No Brasil, não; mal se iniciou o processo. Assim, só há bem pouco foi documentada a obra de Amilcar de Castro (1920), nosso maior escultor contemporâneo, presente já na 2ª Bienal de São Paulo (1953) e um dos signatários do manifesto neoconcreto (1959).
Este livro, cuja primeira edição em tiragem restrita é de 1992, foi um trabalho piloto no gênero, fruto de um grupo de críticos e artistas que se reuniu à margem da indústria editorial. Agora, relançado em tiragem superior por uma nova editora, dirige-se a um público maior. Precursor, o livro também tem o mérito de ter fixado na área um padrão exemplar de apuro gráfico e de documentação séria e acurada. Outro atrativo é que a impressão, valendo-se dos mesmos fotolitos, foi feita na Itália e traz a qualidade dessa indústria gráfica de renome mundial.
A nitidez das imagens da presente edição salienta ainda mais a atenção rigorosa de Amilcar ao vigor próprio da matéria; a alteração da superfície pela ação do tempo -a ferrugem quase corpórea, uma quase-cor- surge com rara intensidade. Por instantes, abrindo as páginas duplas que retratam o ateliê de Amilcar, somos de tal maneira invadidos pela espessura das superfícies enferrujadas e a presença vigorosa das pequenas e maciças esculturas que nos sentimos os autores do deslocamento da parte móvel que as constitui.
O projeto editorial conduz, pois, com eficácia, a relação entre os textos - "Uma Poética do Risco" (Rodrigo Naves) e "Sobre Uma Escultura de Amilcar de Castro" (Ronaldo Brito)- e as fotografias que registram a trajetória de Amilcar de Castro. Esta, iniciada em diálogo com a obra construtiva de Max Bill, exposta na Bienal de São Paulo de 1951, é cuidadosamente resumida em "Breve História da Obra" (Alberto Tassinari). O livro traz ainda depoimentos e poemas do escultor, além de textos de Ferreira Gullar e Hélio Oiticica que contextualizam a obra de Amilcar no movimento neoconcreto.
É de se notar, entretanto, a ausência de maior documentação sobre sua experiência como diagramador e autor do inovador projeto gráfico realizado para o "Jornal do Brasil" na década de 50. De qualquer modo, a difícil tarefa de diagramar um livro sobre a obra deste grande escultor e diagramador foi bem elaborada, levando-nos a apreender, compassadamente, a espacialidade da obra e o peso maciço dos blocos de ferro.
Uma das questões pontuais da obra de Amilcar de Castro é que ela instala, a partir da raiz construtiva, um espaço peculiar no âmbito do pensamento escultórico contemporâneo, que difere daquele instaurado na obra de outros artistas neoconcretos de igual raiz, como Lygia Clark e Hélio Oiticica. Nestes, a proposta de envolvimento do espectador com a obra implanta-se em termos mais íntimos ou subjetivos: descortina uma dinâmica profunda do sujeito e suscita a espacialização de um intenso universo interior. Em Amilcar, trata-se de um espaço mais público, ativado pela alteridade, ou seja, de um espaço social efetivo.
Na arte brasileira, mais especificamente no movimento neoconcreto, a busca de uma articulação da interioridade com o mundo foi se constituindo passo a passo, por meio de obras como "Caminhando" (1964), de Lygia Clark. Esse trabalho pressupõe a ação do espectador para se realizar. Ele ativa, durante sua execução, a inteligência espacial desse espectador que, ao introjetar novas percepções espaciais, as incorpora ao seu universo interior -numa atitude quase antropofágica de digerir o espaço do mundo quando dele se conscientiza.
Na escultura de Amilcar, a articulação sujeito-obra ocorre "quando, e por fatalidade, o espaço se integra, criando o não-previsto", como diz o artista. Originária do corte e dobra na superfície da chapa, esta passagem -via que se abre no nascimento da escultura- propõe uma nova e possível sociabilidade, afirmando a dimensão pública da obra.
O texto do crítico Rodrigo Naves comenta esta potência estética das esculturas de Amilcar: "Seus trabalhos admitem -e, a bem dizer, instauram- um movimento de passagem que leva sempre à concretização de espaços situados para além dos lugares magnetizados pela nossa presença. As esculturas -sobretudo as de corte e dobra- surgem de intervenções que as colocam como mediação". Assim, apreende-se o espaço do mundo buscando um lugar próprio dentro dele. Lugar que só a obra instala, radicando esta integração: marca de uma sociabilidade que, até então, aparecera só como promessa na arte contemporânea.
Durante os anos 40, Amilcar estudou com Guignard. Absorveu de seus ensinamentos a acuidade do traço que define o pensamento plástico. Instigado a usar o lápis duro para desenhar, aprende dessa experiência a precisão do risco que deixa sua marca irremovível no papel. Mais tarde, durante os anos 70, 80 e 90, esse mesmo gesto executado sobre a chapa de ferro abre um rasgo de luz que se inscreve no espaço. Esta aguda e parcimoniosa precisão de linguagem nos leva a perceber o homem exigindo de si mesmo e do mundo a dimensão exata do necessário à vida.
Todo excesso inútil à construção da linguagem é posto de lado, numa demonstração de que a economia, no jogo de relações com as coisas, pontua suas identidades e as revela. Poucos e ímpares, os procedimentos tornam-se essenciais: importa que sejam afirmativos na poética que propõem. Nas esculturas mostram-se tão eficazes que parece ser a luz que corta a chapa ou o bloco espesso de ferro. Nelas, a frequência do pensamento plástico se compatibiliza de tal modo com a da luz que a ela se conjuga, tornando-a sua matéria expressiva. O risco de luz ganha presença corpórea, de sonoridade cristalina. Substitui a densidade do ferro, espacializa a luminosidade ao redor, tornando-se elemento de trabalho.
Isto ocorre nas pinturas e esculturas de Amilcar expostas recentemente em São Paulo: grandes áreas luminosas -os "quadrados sustenidos" de Amilcar- provocam tensão na forma. Apresentam-se na superfície das telas e se estendem para as esculturas, gravando vãos e fendas na massa escura do ferro -espaços luminosos que Rembrandt invejaria. Refiro-me às esculturas de ferro onde o elemento deslocável, transferido de lugar, deixa livre um espaço que nada tem de vazio, porque pleno de luz e tensão.
O mesmo ocorre nas áreas das golas brancas e luminosas das roupas dos personagens da "Lição de Anatomia" (1632) do mestre holandês, que emergem de um campo pictórico negro-sépia, denso como ferro. Valor que se repete na veste alva de sua "Mulher no Banho" (1640), cujos pés mergulhados na água, ampliam a espacialidade da obra, ocultando o lugar de apoio no chão: o corpo se sustenta pela tensão criada entre área de luz e de opacidade escura.
Este instante em que luz e espaço coincidem, quer no plano pictórico, quer na tridimensão, surge agora em esculturas de madeira, ferro e granito. Cada um destes materiais impregna nosso olhar de exigências distintas, de modo que, ao nos deparar com as atuais esculturas de madeira, percebemos que a presença de seus veios nos faz buscar sua forma inicial na ânsia de recompô-la. Rodrigo Naves, no texto do catálogo desta última exposição de Amilcar, assinala: "Os trabalhos realizados com baraúna -uma madeira escura e resistente- parecem tender para uma reconstituição do bloco de que partiram. A sua cor, o seu aspecto vegetal -em que os veios guardam a lembrança de algo que cresceu aos poucos- conduzem a percepção ao restabelecimento de uma continuidade que apenas momentaneamente foi suspensa por cortes e deslocamentos".
Por outro lado, o granito, na sua dureza, rejeita qualquer movimento de reconstrução das etapas que o constituem e se nega a retornar ao bloco inicial. Nas esculturas de ferro, a força do corte é tão determinante que sustenta no tempo o instante da cisão que rompe a solidez do bloco e abre na solidão do sujeito ensimesmado uma passagem para o mundo. O tempo diferenciado que se processa ao observarmos estes trabalhos, conferindo-lhes a memória do seu fazer ou negando-a, dá-nos a dimensão da maturidade das condições plásticas envolvidas.
Em contraposição à aspereza dos desenhos (1988-1990) feitos com vassoura e tinta espessa -que conferiam à forma uma forte resistência ao espaço quase dilacerando-o- , as atuais pinturas retomam um posicionamento harmonioso e firme - uma tensão pacífica- , mostrando que uma certa adesão ao mundo, evidenciada no trato diversificado das matérias que o constituem, assinala um domínio poético cujo maior valor é ser véspera de novos confrontos e configurações.
Uma das maneiras de ampliar a compreensão do pensamento plástico de um artista é mergulhar na análise de uma de suas obras. É o que faz Ronaldo Brito no ensaio sobre uma pequena escultura (um quadrado, com 33 cm de lado e 7,5 cm de espessura) que potencializa as inúmeras qualidades plásticas dos trabalhos de Amilcar. Numa descrição simples, trata-se de um plano tripartido, concretizado na espessura da chapa de ferro, que, pelos cortes nela realizados, libera um elemento móvel. Nesta peça há um movimento latente que sustenta a coesão da obra. A potência, que se atualizará também em outros movimentos futuros, fala tanto ou mais da força poética do trabalho do que a evidência do elemento móvel então deslocado.
A obra contém, no seu raciocínio plástico, a dinâmica do deslocamento que atesta sua capacidade de imantar o espaço, criando um campo que, ativado pela tensão entre as partes, abriga suas inúmeras configurações. A idéia de equilíbrio se apresenta, assim, sob um prisma amplo e inovador: resulta da possibilidade de conciliar o movimento do elemento e a unidade concentrada no todo.
Paralelamente, o conceito de tempo se apresenta de maneira singular: mentalmente percebem-se e executam-se os diversos procedimentos de deslocar uma parte sem perder contato com o todo. São operações virtuais que ocorrem num tempo não-sequencial e atestam a simultaneidade das diversas conformações latentes contidas naquela que foi efetuada, gerando o fato plástico observado. Esta conformação detém, no instante mesmo do seu surgimento, todas as demais possibilidades de organização anteriormente cogitadas pelo espectador.
O exercício deste arbítrio, que permite ao observador intervir na disposição da peça sem desarticulá-la, tornando-o quase co-autor da obra, encontra ressonância na fala de Amilcar: "O homem e as coisas existem de graça. Um não existe sem o outro. Eu sou porque ela é. Ela é porque eu sou. Somos de graça. A superfície está em branco. Eu também. Se com gesto toco, eu sou tocado".
A interação sujeito-mundo se manifesta em diversos momentos na obra: o corte, rasgo de luz no ferro, revela o gesto lento que o realiza, afirmando a perene resistência do mundo à vontade do sujeito. Por outro lado, a ferrugem torna porosa a superfície da chapa, numa demonstração da potência do mundo sobre as coisas e da possibilidade destas de fazer, mediante uma reação da erosão, a proteção necessária à sua permanência no mundo. O atrito produtivo sujeito-mundo e a relação decisiva entre as coisas e o mundo indicam que estes movimentos independem da vontade do sujeito que, querendo ou não, quando estimulado por uma ação externa, é levado a lidar consigo mesmo, operando transformações na própria estrutura interna para suportar o movimento de aproximação ou a presença mesma do outro -ou seja, das pessoas, das coisas, do mundo.
É o que ocorre com o Cor-Ten, matéria da qual são feitas as esculturas de ferro, cujo contato com o ar que as envolve cria uma camada de ferrugem que, após determinada espessura, entra em estagnação, tornando-se não mais erosão, mas proteção da superfície e do corpo total da escultura.
Provando que o lidar com o mundo não é mera imposição ou necessidade, mas mecanismo de atualização de valores individuais, que só emergem e se consolidam no campo das relações sociais dadas, homem e mundo se inscrevem, assim, na dimensão evolutiva e ameaçadora da vida.
A escultura de Amilcar de Castro nos leva ao entendimento e prática desta possível ação social, em que a potência do sujeito se amplia na medida exata de sua inserção no campo social. A obra, então, é a evidência plástica que hoje delineia a conjunção possível de valores éticos e estéticos, diante desta disjunção que os ameaça.

Iole de Freitas é artista plástica.

Folha de São Paulo

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