quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A Batalha pela Espanha: a guerra civil espanhola (1936-1939)


Antônio Carlos Lessa
Nov 2008
Meridiano 47
A guerra civil da Espanha, um dos mais trágicos conflitos do século XX, foi contundentemente retratada em peças da literatura universal e em imagens marcantes do século, tendo sido eternizada na literatura mundial por Ernest Hemingway, em Por quem os sinos dobram, e o seu épico magistralmente ilustrado por Pablo Picasso, em Guernica. Romantizada, sem dúvida, pelos relatos dos envolvidos de lado a lado, a Guerra antecipou as oposições que se tornariam evidentes com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, tendo sido o palco da política de intervenção das potências européias e medida do enfrentamento feroz a que se entregariam poucos anos depois.
A Batalha pela Espanha, do pesquisador inglês Antony Beevor, é uma atualização de obra homônima publicada em 1982, que se fez necessária a partir da abertura do acesso a novas fontes documentais sobre o conflito, algumas delas na Espanha, mas principalmente na Rússia pós-soviética. Beevor é já conhecido do público brasileiro por outros títulos extraordinários que não versam propriamente sobre história militar, mas sobre dimensões político-diplomáticas de episódios da Segunda Guerra Mundial. Entre esses títulos, destacam-se Creta: Batalha e resistência na Segunda Guerra Mundial (2008), Stalingrado (2002), Berlim, 1945: A Queda (2004) e O Mistério de Olga Tchekova (2005), todos trabalhos construídos a partir de sólida e diversificada base documental.
Este Batalha pela Espanha é principalmente uma história política e militar do conflito, recuperando o desenrolar dos eventos da vida política espanhola do final da Primeira Guerra até o final da Segunda. Para Beevor, os fundamentos da Guerra Civil não estão no golpe de Estado de julho de 1936, mas nos padrões que moldaram a estrutura social da Espanha desde o período da Reconquista (722-1492), quando o norte Cristão conquistou o sul mouro e unificou a Espanha sob o cristianismo. Os fatores sociais mais relevantes para o conflito se situam na estrutura social espanhola dos anos vinte e, mais particularmente, no alinhamento da monarquia, da igreja, dos grandes proprietários rurais e do exército, o que alimentou os conflitos de classe, o debate sobre a modernização política e as rivalidades regionais.
A barbárie de uma guerra civil, por breve que seja, já é suficiente para chocar pelo contexto das ideologias polarizadas, pela ferocidade da ação militar das partes, pelos relatos de coragem e de sacrifício. A Guerra Civil da Espanha teve um componente adicional na sua trama trágica, que foi o envolvimento determinado da Alemanha nazista e da Itália fascista (que apoiaram de modo decidido material e politicamente os nacionalistas), e da União Soviético, tardio e insuficiente, ao lado dos republicanos. Os limites e as insuficiências das políticas de mediação da França e da Grã-Bretanha e o distanciamento dos Estados Unidos do conflito, fizeram da Guerra Civil espanhola um negócio dos autoritarismos europeus.
A narrativa elegante e envolvente, preservada em boa tradução, é um estímulo aos leitores que se entregam às pouco mais de 700 páginas dessa intensa história. A Batalha pela Espanha, obra de um historiador meticuloso, não se destina apenas aos iniciados em História da Europa e em Relações Internacionais, mas também a todos quantos se interessem pelas dimensões humanas de um conflito que foi o prólogo da grande tragédia européia que foi a Segunda Guerra Mundial.

BEEVOR, Antony. A Batalha pela Espanha: a guerra civil espanhola (1936-1939). Rio de Janeiro: Record, 2007, 714 p. ISBN 8501075205.

Antônio Carlos Lessa é Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília - UnB e editor da Revista Brasileira de Política Internacional - RBPI. É pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (alessa@unb.br).

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

NOBRES E ANJOS - UM ESTUDO DE TÓXICOS E HIERARQUIA

GILBERTO VELHO
Boêmios e surfistas
11/Jul/98
Maria Filomena Gregori



Para aqueles que ainda não completaram 40 anos, a imagem da juventude dos anos 60 e início dos 70 foi desenhada com vigor a partir dos personagens que sofreram direta e fisicamente os efeitos da ditadura militar. Livros com grande impacto na década de 80 - "O Que É Isso, Companheiro?", de Fernando Gabeira (1979), "Os Carbonários - Memórias da Guerrilha Perdida", de Alfredo Sirkis (1980), "Reflexos do Baile", de Antonio Callado (1976)- descrevem uma geração, por intermédio dos seus heróis. A militância de esquerda, radicalizada pela luta armada e arbitrariamente reprimida, constitui o material de nossa memória: ainda que estatisticamente pouco significativos, esses jovens foram sendo tomados como os protagonistas de uma história a ser lembrada e, também, a ser revista.
Comparados com tal referência "heroificada", os outros segmentos juvenis permaneceram obscuros. Não sabemos exatamente quais foram os efeitos da ditadura sobre as suas escolhas e aspirações. O único relato da dureza da ditadura sobre jovens que, contrários a ela, mas distantes de uma militância efetiva, sofreram punições absurdas está no livro de Caetano Veloso, "Verdade Tropical" (1997). A descrição honesta sobre a sua ingenuidade diante das autoridades que o sequestraram pela manhã, sobre a apoplexia que o acometeu na prisão sem nunca ter sido esclarecido por que estava preso e sobre a vida "cinza" no exílio, mostra a difusão do terror naqueles que adotavam comportamentos não-convencionais.
Esse medo que se espraia na sociedade explica por que o livro do antropólogo Gilberto Velho, defendido como tese de doutoramento na USP em 1975, só foi publicado 22 anos depois. O autor manteve a versão original, mas, no prefácio, escrito agora, revela que limitar o estudo às estantes universitárias significou proteger a segurança do universo social investigado, salvaguardando-o da exposição pública. Além do valor documental, este livro veio em boa hora. Ao acompanhar os resultados da investigação sobre o uso de tóxicos por jovens de classe média alta, residentes na zona sul do Rio de Janeiro, encontramos reflexões que não perderam a atualidade.
Uma das principais contribuições de Gilberto Velho na consolidação de estudos antropológicos em meio urbano no Brasil é adensar o conhecimento sobre as camadas sociais médias, com pesquisas sobre segmentos que vivem na zona sul do Rio de Janeiro. Na sua dissertação de mestrado, publicada em livro, "A Utopia Urbana" (1973), ele já perseguia uma mesma questão: tratar um segmento localizado como classe na estrutura social sem cair na armadilha reducionista que associa o comportamento cultural a uma condição material de existência.
Os estratos sociais inseridos numa sociedade complexa não podem ser tomados como setores homogêneos, dada a proliferação de experiências sociais pautadas pela heterogeneidade, simultaneidade de papéis e aspirações diversificadas. Essa heterogeneidade produzida pela intensificação da divisão social do trabalho encontra expressão vívida na multiplicidade de estilos de vida e de visões de mundo. O autor busca entender os mecanismos simbólicos que revestem as atividades sociais, extraindo deles procedimentos de distinção social capazes de criar fronteiras entre os grupos (nesse caso, grupos de "status", conceito weberiano particularmente fecundo em sociedades em que a hierarquia desempenha um papel singular).
Na tese de doutorado, Gilberto Velho estuda o uso de tóxicos e se pergunta até que ponto essa atividade social estabelece fronteiras na sociedade. Mas, como pondera o autor, o consumo de drogas deve ser visto como ponto de partida para uma análise -essa sim fundamental- sobre o etos associado ao comportamento considerado desviante: "O tóxico só pode ser compreendido contextualmente", no interior de uma rede de relações sociais que comporta, além de uma circunscrição sociológica, laços afetivos e o desenvolvimento de certos padrões emocionais.
Para tanto, seleciona dois grupos de jovens que, mesmo ocupando uma posição social comum -a alta classe média-, desenvolvem uma posição diversa não só em relação ao uso de drogas, como na configuração de seus valores e estilos de vida. O primeiro grupo -os "nobres"- é constituído por jovens adultos, recém-casados, em início de carreira vinculada à produção cultural, enredados numa sociabilidade "artístico-boêmio-esquerdista". O segundo grupo -os "anjos"- está localizado entre jovens mais novos, estudantes secundaristas, residentes com as famílias, surfistas por opção lúdico-afetiva.
Sobre os primeiros, analisados de forma mais detida, o autor revela a faceta "vanguardista-aristocrática" de uma gente que, tendo tido alguma participação política na década de 60, abandona essa preocupação e adota um modo de vida centrado na busca do autoconhecimento, estimulados pelas drogas, mas, também, pela psicanálise, pelas viagens ao exterior, pelos restaurantes caros e por um convívio sofisticado e culturalmente antenado. Nos "anjos", grupo de referência para fins comparativos, o autor identifica uma inclinação voltada para o culto ao corpo, por meio de esportes e de "liberdade" sexual. Eles desvalorizam a expressão discursiva e superestimam a "curtição".
Para além de uma etnografia de grupos de classe média alta, este livro lança reflexões relevantes. De um lado, mostra que as elites brasileiras constroem suas fronteiras aristocráticas mesmo em meio a comportamentos transgressores. O desvio passa a ser uma conduta impune que traz como consequência o mero reforço de "status". De outro, permite vislumbrar algo que vai se delinear com muita intensidade nas décadas de 80 e 90: o florescimento de um tipo de individualismo fortemente hedonista. Guardadas as diferenças entre os grupos, é a busca de prazer que organiza e orienta suas ações e escolhas.
Essa também é a preocupação de um outro autor, Richard Sennet, que publica o seu "O Declínio do Homem Público" em 1974. Os dois estavam elaborando seus estudos no período de intervalo entre os movimentos estudantis de 68 e as ainda embrionárias formas de ação política libertárias que consolidaram na militância o slogan "O pessoal é político" (os movimentos feminista e homossexual serão expressões decisivas dessas novas formas). Ambos demonstram perplexidade diante de um quadro semelhante: a exacerbação de um individualismo narcisista, fazendo da intimidade uma tirania, no caso de Sennet; e o individualismo hedonístico calcado na dificuldade de enfrentar o medo da ditadura, no caso de Gilberto Velho.
Eles esboçam críticas ao comportamento individualista que sublima o político e reduz a convivência pública, exacerbando a privatização das relações sociais.
Nesses 20 anos, o cenário se tornou mais complexo: o individualismo hedonista ganhou uma conotação agonística. Para entender a intensificação dessa face do individualismo, o exame das drogas se torna particularmente exemplar: comparado com o contexto descrito por Gilberto Velho -em que o sentido da droga era o de "abrir cabeças" e "curtir"- , hoje o problema é mais sério. É inegável que o tóxico está ligado a um tráfico que articula, de forma perversa, características "empresariais", ilegítimas e violentas, como bem aponta Alba Zaluar no livro "Condomínio do Diabo" (1995).
O que significa atração de "trabalhadores" (cada vez mais jovens) para a expansão da rede de distribuição da droga, conflitos terríveis entre grupos rivais e um custo social extraordinariamente mais elevado.
Se já existem estudos que analisam as motivações e relações dessas novas formas do tráfico com os jovens pobres, falta uma investigação do mesmo tipo, tomando os jovens de outros estratos sociais. Aí está a atualidade do livro de Gilberto Velho: ele mostra a importância de buscar o sentido fundo do uso da droga, seus significados de distinção e, principalmente, como o consumo se liga a um conjunto mais extenso de práticas, valores e estilos. Decifrar esse conjunto implica enfrentar o desafio de entender que sociedade é essa, em que a droga permite cristalizar suas perversões, seus descontroles e sua violência.

Maria Filomena Gregori é professora de antropologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do Cebrap.


Folha de São Paulo

A ESQUERDA POSITIVA - AS DUAS ALMAS DO PARTIDO COMUNISTA - 1920/1964

GILDO MARÇAL BRANDÃO
Dilemas do Partidão
11/Jul/98
Brasilio Sallum Jr.


Gildo Marçal Brandão inicia a apresentação do seu livro com uma frase, cujo enunciado só pode ser aceito com uma pitada de sal: "Na medida em que a esquerda comunista é história e não presente, tornou-se possível analisá-la 'sine ira et studio'".
Embora o texto tenha sido escrito sem ódio nem preconceito, não se encontrará nele análise fria e desapaixonada. O livro transpira paixão da primeira à última página. É com alma de "partisan" de certo realismo político, de vertente hegeliano-marxista, que o autor examina a esquerda comunista brasileira no período 1920 a 1964. Isso, por si só, já faz do livro uma exceção na produção contemporânea de ciência política, cada vez mais pautada por pretensões "científicas" que isolam a atividade política de suas conexões com as bases materiais da sociedade e a esvaziam de conteúdos conflitivos. Além disso, parte das questões políticas que focaliza ao estudar o velho Partidão são traduzíveis para o presente e constituem objeto de debate intenso na esquerda atual.
O aspecto polêmico do livro aparece nas três hipóteses que formula. A primeira é que, do mesmo modo que o capitalismo, a classe operária é de formação hipertardia, só tendo gerado formas de autoconsciência na medida em que o capitalismo "verdadeiro", isto é, industrial, se foi implantando entre nós.
Esta afirmação contraria a maior parte da literatura sobre as formas de organização da classe operária, cujo ápice estaria na Primeira República e cuja trajetória de decadência se daria a partir dos anos 30. Para Gildo Brandão, ao contrário, só nos anos 50 -quando o capitalismo industrial no Brasil começa a se integrar nacionalmente- seria pertinente o debate sobre estar ou não o operariado se constituindo como classe politicamente autônoma. Mesmo que os agentes só pela consciência possam transformar-se em sujeitos históricos, trata-se sempre de consciência da objetividade, não cabendo falar em autonomia política da classe operária em épocas em que ela mesma nem sequer fora produzida pelo capital.
Seguindo esta orientação, Brandão avalia cuidadosa, mas severamente, a literatura acadêmica que faz apologia do sindicalismo das minorias militantes, de orientação anarquista, que dominava o movimento operário antes de 1930. Não há "que confundir combatividade, resistência e grandeza moral com significação histórico-universal; nem as lutas cotidianas e a natural resistência da classe operária à escravização que o sistema de salariado e a existência do Estado implicam, com a constituição de sujeito político".
Mais: a estrutura sindical montada pelo movimento anarquista seria mais produto que premissa das agitações políticas da época, e as grandes greves de 1917 e 1919 seriam antes manifestações de desespero e isolamento que de maturidade e capacidade de articulação e defesa dos interesses da classe operária. E, para completar, no pós-30, longe de decaírem politicamente, "pela primeira vez os trabalhadores aparecem como classe nacionalmente configurada, ainda que reconhecida e posta como tal pelo alto". O que teria as implicações já apontadas décadas atrás por Weffort: o sistema político dominante não poderá se desenvolver sem alguma forma de consentimento ativo dos "de baixo".
A segunda hipótese é a de que o terreno privilegiado para a construção da identidade operária é o partido político, a relação com o Estado e a política institucionalmente considerada.
Com isso, Gildo Brandão opõe-se à literatura que tende a reconhecer a classe operária só na vida sindical, nos movimentos de resistência à hierarquia e à disciplina fabris, nas greves etc., literatura que tenta isolar o campo da autoconstituição do sujeito do campo do poder, que concebe o Estado de forma negativa, como se fosse possível isolar o instituinte do instituído, o movimento operário do movimento geral da sociedade e fazer a história auto-referida do proletariado. Para ele, ao contrário, o sujeito "classe operária" não se constituiria anteriormente à sua participação nas instituições: a forma do processo político vigente condicionaria os próprios modos de ser da classe e da luta de classes...
Nesse passo, o autor desenvolve discussão brilhante sobre o significado da ilegalidade do PC durante a República Liberal (1946-64). Na medida em que o processo político mais inclusivo condiciona o modo de ser operário e passa a se introjetar no seu interior, a ilegalidade do PC é "variável forte para explicar a subalternidade operária durante a República liberal". A fraqueza política e ideológica do proletariado brasileiro não resultaria apenas do caráter retardatário da industrialização e da heterogeneidade estrutural da classe operária ou da orientação política desastrada de seus dirigentes.
O veto à participação política legal das classes subalternas por representação própria -proibição inerente ao sistema político- teria funcionado como impedimento estratégico à formação de uma classe operária autônoma, tornando difícil e lenta a formação de sua consciência política.
O autor sugere também que a exclusão política do PC condicionou, junto com a hipertrofia do Executivo, a evolução política dos partidos no período. A ausência de um enfrentamento sistemático com uma organização política vinculada às classes subalternas teria dado uma sobrevida aos partidos de notáveis, insulados na vida parlamentar. Restringindo a competição, a marginalização do PC teria contribuído, enfim, para bloquear a diferenciação e consolidação do sistema político-partidário. De forma mais geral, a ilegalidade do PC é tomada como indício do caráter limitado da democracia de 1946.
As duas hipóteses têm consequências fortes sobre a avaliação da ação e ideologia do PC: de início, não havia suporte material para a autonomia do partido e, quando ele apareceu, a ilegalidade restringiu sua arena de luta possível. É nesse passo que Gildo avança uma terceira hipótese, relativa ao conteúdo ideológico e à orientação política do Partidão: "A especificidade do comportamento ideológico e da ação do PC foi sua incapacidade (ou impossibilidade) de optar definitivamente entre uma via revolucionária e uma via reformista (...), tendo em consequência atraído segmentos distintos da população com motivações diversas". Desta forma, "a contradição entre civilistas e militaristas, (que) permeia toda a história do PC e da esquerda política brasileira (.. .), não se reduz à origem militar ou civil de seus dirigentes. Ao contrário, tem a ver com a concepção de fazer política: politicista ou insurrecional".
Chegamos aqui à idéia de que o PC era portador de duas almas, a de esquerda negativa, insurrecional e golpista, que concebe a revolução como explosão, e a de esquerda positiva, atenta à lógica inerente à vida política, que reconhece que o "objetivo final" só pode ser alcançado por meio de objetivos intermediários e soluções "viáveis", que concebe a revolução como processo.
Segundo Brandão, as duas almas sempre conviveram conflitivamente no PC: a alma de esquerda positiva teria dominado apenas por curtos períodos, nos ascensos de massa de 1942-47 e 1958-64; e teria sido subjugada pelo vanguardismo, pelo golpismo e pelo aventureirismo. Exatamente o inverso, sublinhe-se, da imagem acomodada, conciliadora etc. que se tem feito do Partidão nos últimos decênios.
Mas, como os qualificativos empregados indicam, o juízo histórico do autor sobre a atuação do PC é bastante duro. Ela teria sido determinada "por uma leitura catastrofista da realidade, vale dizer, do capitalismo e da democracia" e pela idéia da iminência do socialismo que estaria embutido em todas as lutas econômico-sociais. Ou, ao inverso, o modo dominante do PC fazer política desconheceria as condições objetivas do país, a especificidade do capitalismo no Brasil, desprezaria as instituições em geral e as brasileiras em particular, a busca de objetivos intermediários e, sobretudo, a elaboração de soluções positivas para os problemas nacionais.
Um juízo como este não diz respeito apenas ao PC. Ele respinga sobre as concepções vanguardistas que levaram a esquerda para a luta armada nos anos 1960 e 70. E a discussão a respeito da conduta oscilante do PC fornece instrumentos para avaliar os dilemas e a ação da esquerda nos dias de hoje. Já não há mais a ganga da ilegalidade pesando sobre ela. E a alternativa de instaurar de imediato uma nova sociedade, socialista, se converteu em utopia. Mas não há como negar que, com outras vestes, o dilema de ser negativa ou positiva permanece no cerne da esquerda.
O livro de Gildo Marçal Brandão poderá, é claro, sofrer restrições -não me parecem plenamente satisfatórias as explicações que dá para o domínio do vanguardismo do PC ou mesmo para a relação entre objetividade e subjetividade no processo histórico. Mas, sem dúvida, constitui obra de qualidade superior e leitura indispensável, seja para a compreensão realista da atuação do PC no Brasil, como guia para os estudos sobre o movimento operário, contribuição à história da formação do país e, mais que tudo, talvez, como instrumento para a análise do presente.

Brasilio Sallum Jr. é professor do departamento de sociologia da USP.


Folha de São Paulo

sábado, 8 de novembro de 2008

VERDADE E MÉTODO (TRAÇOS FUNDAMENTAIS DE UMA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA)

HANS GEORGE GADAMER
Nós somos um diálogo
08/Ago/98
Benedito Nunes


Depois dos anos 60, publicou-se pelo menos um livro filosófico raro, daqueles que espelham na sua diversificada matéria, na sua exposição dubitativa e tortuosa, o embate do pensamento para dar forma à questão investigada: "Verdade e Método".
Desde a Antiguidade grega, sob a custódia do deus mensageiro Hermes, patrono-mor da interpretação de Homero na época helenística e depois do labor interpretativo das Escrituras hebráico-cristãs, a hermenêutica é, na acepção corrente e generalizada, a arte de extrair as mensagens implícita ou explicitamente contidas nos escritos literários, jurídicos ou religiosos. Sua incumbência consiste, portanto, na interpretação dos textos, mediante um trabalho de exegese. Como então passar dessa hermenêutica-arte, ou técnica, para a hermenêutica filosófica, de que "Verdade e Método" traz o delineamento? A passagem talvez nos seja indicada pelo uso, mais dilatado do que se imagina, até fora do domínio da escrita, do ato de interpretar, pois que nos basta falar com alguém em nossa própria língua ou numa língua estrangeira, para já estarmos interpretando e sendo interpretados, na medida em que compreendemos e nos fazemos compreender.
Ora, é precisamente desse fato curial da compreensão a relevante questão investigada no livro de Gadamer de que depende a arte ou a técnica da interpretação dos textos. A compreensão não vem depois da vida, mas a permeia em seus momentos todos. Compreendemos o outro quando com ele falamos; uma ferramenta quando a utilizamos; os acontecimentos cotidianos quando nos atingem; o ambiente ou o mundo em que vivemos. Compreender é uma atitude mais primária do que o exercício do conhecimento científico, a teoria no sentido estrito. Por ser primária, é curial, e por ser curial, inapercebida. Podemos compreender sem conhecer cientificamente, mas não podemos conhecer cientificamente sem antes termos compreendido a coisa de que se trata. Daí dizer-se que a compreensão é adesiva, envolvendo, como diz Gadamer, uma relação de pertença ao que nos rodeia.
No que chamamos de interpretação, a compreensão se expressa, se traduz, se explicita. Daí a afirmativa de Heidegger, no parágrafo 32 de "Ser e Tempo" (um dos mais próximos e reconhecidos antecedentes de "Verdade e Método", que dele faz expressa menção), de que interpretar é desenvolver "as possibilidades projetadas na compreensão". Mais ainda, a interpretação não pode fazer-se sem pressuposto; e esse pressuposto é a prévia compreensão daquilo que se interpreta, ou seja, a adesão, a pertença a que antes nos referimos, e que se desdobra num nexo referencial (a situação na qual estamos), numa perspectiva que lhe é correlata (modo de ver) e nos conceitos em que se explicita (modo de conceber). Desse modo, o interpretar manifesta, antes de tudo, o compreender a que se acha aderido. Se assim é, os enunciados heideggerianos, que acabamos de registrar, implicam a admissão de uma intrínseca circularidade da interpretação.
Quer isso dizer que nesse círculo hermenêutico, traçado por Heidegger e adotado por Gadamer, e dentro do qual já nos encontramos, recai a mesma hermenêutica-arte, a partir de nosso enquadramento fáctico no mundo, como esse ente temporal, falante, capaz de discurso, que somos, com a dupla aptidão de compreender-se e interpretar-se -de compreender-se porque esse ente, o "Dasein" (1), existe projetando as suas possibilidades, e de interpretar-se, porque primeiramente se dá conta, segundo elas, de si mesmo, das coisas e dos objetos que se lhe apresentam, percebendo-se e percebendo-os "como" isso ou "como" aquilo. O "Dasein" está sempre nesse círculo de uma compreensão já atuante, abrindo-nos sempre ao mundo, na situação de intérpretes para os quais nada é indiferente e tudo adquire imediato sentido, e que é a matriz da experiência e de seu caráter antecipativo, como estrutura significativa que condiciona e possibilita a exegese dos textos, o conhecimento científico, o fazer artístico, as expectativas do futuro e as interrogações sobre o passado.
Interpreto os textos pelo mesmo movimento compreensor que me permite interpretar-me. A exegese de um escrito não constitui um mero ato de saber e de erudição; é um ato que me empenha, que me compromete, que me põe em causa como existente, mobilizando-me a condição temporal inserta entre "o presente das coisas presentes" e aquele outro presente, a mim disponível mediante testemunhos, sejam escritos sejam orais, das coisas passadas. Pelo laço de pertença, estaria a interpretação do lado da verdade originária do "Dasein".
Por sua vez, o conhecimento científico, como possibilidade determinada do "Dasein", tem no método o meio de acesso aos seus vários campos. O método é a via que lhe permite concretizar-se objetificando-os, isto é, convertendo-os em objetos de proposições coerentes, por sua vez fundamentadas nesse mesmo processo metodológico. Dá-se, porém, que a objetificação metodológica traz em si mesma uma atitude de distanciamento relativamente ao que se conhece, atitude essa que não só se opõe à anterior atitude de adesão, de pertença, correspondente à verdade situacional do "Dasein", como também a desconecta, neutraliza ou abstrai, alienando-nos dela, onde quer que possa introduzir-se, no fazer artístico ou no conhecimento histórico, que responde às interrogações sobre o passado.
Restabelecer as conexões da verdade nesses domínios, recuperá-los, portanto, como um prolongamento daquela experiência matricial pré-científica, de que mesmo a ciência se origina, e que se trata de desalienar; soltar as amarras metodológicas do conhecimento histórico, que encontra sempre na interpretação dos textos-fontes o seu teste crucial; retirar da avaliação da arte a servidão moderna, mais schilleriana do que kantiana, ao juízo estético; firmar as condições do compreender -a compreensão da compreensão; restaurar, enfim, o direito da interpretação em sua maior generalidade, circulando do texto para o mundo, lido como um texto que tem significações várias, sustentadas todas pela linguagem, que é o solo mesmo da nossa experiência (Gadamer chama à linguagem de "ser") e, ainda, levar essa generalidade reconquistada ao pólo de uma reflexão das filosofias, todas dependendo de uma cadeia histórica de atos interpretativos -eis o movediço espectro da filosofia hermenêutica delineada em "Verdade e Método".
"A questão é de saber", propõe-nos Paul Ricoeur num comentário arguto, "até que ponto a obra de Gadamer merece denominar-se: 'Verdade e Método'; talvez fosse preferível intitular-se 'Verdade ou Método'".
A verdade da experiência hermenêutica vai de encontro ao método nas duas grandes verificações feitas por Gadamer: primeiramente, sua crítica à cultura estética -cultura das aparências- pela qual começa seu livro, recapitulando a ascensão das noções de gosto e de vivência ("Erlebnis"), esta última posta em vigor, de diferentes maneiras por Dilthey e Husserl -e, em seguida, na segunda parte toda ("A Extensão da Questão da Verdade à Compreensão nas Ciências do Espírito"), num esforço analítico de destrinçamento da consciência histórica, sua crítica à hermenêutica romântica de Schleiermacher, à "Aufklärung" (Ilustração) e ao historicismo de Droysen, Ranke, Dilthey e Hegel.
A consciência estética, que legitima a obra de arte como objeto de juízo de gosto, enquanto produto da vivência do artista referendada pela vivência do receptor, é sempre, como observa Gadamer, num escrito de 1965 ("A Universalidade do Problema Hermenêutico"), "uma consciência segunda, segunda relativamente à pretensão imediata à verdade que emana da obra de arte". Essa verdade consiste num modo lúdico de representação, que se elabora como um jogo e que opera como tal: um jogo de configuração, semelhante àquele levado a cabo pelo ator quando "imita" o seu personagem, isto é, quando interpreta-o. Rembrandt interpreta-se, configurando seus diversos auto-retratos. Cézanne configura a "natureza morta" das maçãs, interpretando-as de diferentes maneiras. A pintura não pode fugir a uma gestualística sacramental, que vem do porte religioso da imagem, a crédito do status ontológico do quadro. Quando o pintor pega no pincel, estaria trazendo para dentro do quadro, independentemente de sua vontade, com uma certa técnica, com um certo estilo, uma tradição invasora, por ele aceita ou contrariada. De qualquer forma, o que se lê no quadro não é a alma do pintor.
Se fosse o contrário, Schleiermacher teria razão: interpretar a obra de um artista, de um poeta, seria determinar-lhe a intenção autoral; o exegeta a conheceria mais de perto do que o seu próprio autor. A ter Schleiermacher razão, conhecer o Evangelho de São João seria, antes de nada, conhecer São João. Gadamer rejeita esse postulado da escola romântica. O sentido de um texto literário ou religioso subsiste para além de seu autor e independentemente dele. O texto nos fala, nos diz algo e, por isso, é interpretável hoje, como será interpretável amanhã, de modo diferente. "Vamos aos fatos", dir-nos-ia porém um representante da "Aufklärung". "Este lê o texto joanino como protestante, aquele como católico, um terceiro como historiador da Palestina. Se varrêssemos todas essas pressuposições, talvez nas linhas escritas pudesse assomar um sentido prístino."
A resposta de Gadamer é que não há sentido prístino e que varrer as pressuposições implicaria, como se fosse possível sair do círculo hermenêutico, em impedir as interpretações, uma vez que, como vimos anteriormente, estas não existem sem aquelas. O que a "Aufklärung" visava, ao encontro desse sentido prisco, era a interpretação não preconceituosa, que afastasse a tradição da autoridade e a autoridade da tradição, tal como defendida pelos românticos. Mas nisso os românticos estavam certos.
A interpretação de um texto não começa no grau zero da escrita ou num patamar de sentido nulo a ser preenchido, pouco a pouco, pelo verdadeiro. Ela começa "in media res", com certos referenciais, numa determinada perspectiva. O preconceito nada mais é do que o correspondente histórico da antecipação da experiência humana. Mas constitui a única entrada possível na matéria -entrada a que necessariamente não ficaremos presos. Podemos corrigir adiante o preconceito; mas, sem jamais rompermos inteiramente com as pressuposições, nossa interpretação avança segundo uma dialética peculiar, imposta pelo próprio texto, e que vale para toda consciência histórica.
Numa medida mais larga, o preconceito, como antecipação da experiência humana, atesta o vínculo com a tradição de que somos partícipes. É o que Gadamer chama de "consciência-da-história dos efeitos" ("Wirkungsgeschichtliches Bewusstsein"): consciência a meias, certamente, porque, segundo nos diz em outro de seus escritos, "determinada por um devir histórico real, de tal forma que ela não possui a liberdade de situar-se em face do passado". No entanto, é na direção do passado que avança o historiador, seguindo a pista, o vestígio, que lhe deixou uma fonte documental. E nisso cumpre a regra hermenêutica de chegar ao todo por meio da parte, ao universal por meio do particular. Mas como avança? Ainda aqui a iniciativa não vem por completo do historiador. Pois se ele, historiador, interpela o texto, deve-se isso à capacidade do texto de propor-lhe as perguntas cujas respostas somente o que está escrito pode lhe dar, fazendo com que avance na direção do passado.
Mas não avançamos para dentro de uma época, de um período do passado, reconstituído com a precisão que os historicistas, os positivistas da história, esperariam alcançar. O tempo decorrido não é neutro: interpôs entre nós e a sociedade pretérita uma distância insuperável -o que não significa bloqueio, fechamento, mas a abertura, sobre essa sociedade outra, de uma perspectiva que só o nosso presente pode dar-nos. Compreendemos essa época distante, infamiliar, aproximando-a do presente, do familiar, onde nos situamos. Essa dialética da proximidade e da distância, completa-se pela apreensão da diferença entre as duas sociedades, a nossa e a pretérita, afastadas entre si pelo tempo. Uma não se identifica com a outra; são os contornos, os "horizontes" das duas que se fundem; e, por isso, ao compreendermos aquela em função da nossa, compreendêmo-la de modo diferente. É um problema semelhante ao da aplicação das leis do direito -redimensionadas pelas necessidades do presente. Para Gadamer, a hermenêutica jurídica é o guia prático da experiência hermenêutica, cujos limites e possibilidades estão circunscritos pela linguagem, assunto da terceira e última parte de "Verdade e Método" ("A Virada Ontológica da Hermenêutica no Fio Condutor da Linguagem"), sobre a qual vou ser brevíssimo.
A linguagem que o filósofo considera é a que, como suporte da experiência humana, extravasa a ciência da linguagem, resvalando do método para a verdade da pertença ao mundo, ao tempo e à história. A experiência humana não é linguística e sim linguajeira ("spraclich"): o falar dos textos, das obras de arte, o entender-se e o desentender-se uns com os outros, a imensa, penetrante conversação humana e a sua tradutibilidade de universo linguístico para universo linguístico. Parece que estamos a ouvir a ressonância do ensinamento de Heidegger extraído de Hölderlin: nós somos um diálogo.
Por último, gostaria de ressaltar, diante das dificuldades extremas que oferece um texto tortuoso, labiríntico, como esse de Gadamer, a tarefa meritória que foi traduzir "Verdade e Método". Mas a tradução incorre em inúmeras falhas. Erros de revisão? Não só. Nenhuma dúvida tenho acerca da competência do tradutor no manejo da língua alemã. Mas tantas são as impropriedades de expressão e os déficits sintáticos em nossa língua, que só poderíamos desejar, em defesa da "última flor do Lácio", que a obra traduzida viesse a ter logo uma segunda edição, rigorosamente revista e aportuguesada.
Nota:
1. A palavra alemã "Dasein" significa "existência" ou "estar presente". Entretanto, no pensamento de Heidegger, esta palavra se converte em conceito e, assim, traduz o objeto da análise do homem enquanto existente: a presença do ser humano no mundo ou, ainda, o modo de ser do homem. Traduz-se, também, enquanto conceito heideggeriano, pela expressão "ser-aí" (nota da Redação).
Benedito Nunes é professor na Universidade Federal do Pará e autor de "Crivo de Papel" (Ática), entre outros.


Folha de São Paulo

DOS CORTIÇOS AOS CONDOMÍNIOS FECHADOS

LUIZ CÉSAR DE QUEIROZ RIBEIRO
O papel dos agentes imobiliários
08/Ago/98

NABIL BONDUKI
O estudo da história da cidade brasileira é recente e ainda repleto de lacunas. Grande avanço tem se dado, no entanto, na última década, graças a alguns grupos de pesquisa que têm realizado levantamentos sistemáticos de fontes documentais. O resultado tem aparecido em livros, teses e artigos acadêmicos, que começam a criar um panorama referencial sobre diferentes aspectos da história urbana no Brasil.
O trabalho de Queiroz Ribeiro, precursor deste esforço, é resultado de uma série de pesquisas realizadas no Instituto de Planejamento Urbano e Regional (Ipur) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ainda na década de 80, que originaram um doutorado apresentado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP em 1991.
Ao contrário de grande parte da produção recente -que tem se caracterizado por trabalhos excessivamente descritivos, geralmente desprovidos de uma reflexão aprofundada sobre o processo de produção do espaço construído-, o livro de Ribeiro busca, na pesquisa sobre as formas de produção imobiliária no Rio de Janeiro desde o final do século 19 até o presente, elementos para discutir a relação entre a propriedade fundiária e o capital de incorporação na produção da moradia, objetivando compreender o papel dos agentes imobiliários no processo de produção do espaço edificado.
Lançando luzes sobre este processo, Ribeiro produz uma contribuição original, numa vertente que não tem tido continuidade -os trabalhos recentes centram-se sobretudo na descrição de planos urbanísticos, sem analisar os processos imobiliários que geram a produção concreta da cidade.
Seu livro peca, entretanto, pela evidente falta de cuidado editorial. Um livro não é o mesmo produto que uma tese acadêmica. Ocorre que muitos autores, exaustos após o esforço realizado nos programas de pós-graduação ou pressionados para ampliar as estatísticas quantitativas de publicações tão ao gosto dos órgãos de avaliação como a Capes e o CNPQ -para quem qualidade não conta-, simplificam o trabalho, publicando sem alteração ou atualização textos originais pouco palatáveis para um público mais amplo. É o caso deste livro, agravado pelo tempo decorrido entre a elaboração da tese e sua publicação em livro (sete anos que mudaram o mundo!) e pela despreocupação em adaptar e reelaborar o texto para um público menos familiarizado com a discussão teórica.
Assim, a boa tese de Ribeiro resultou num livro denso e difícil. A responsabilidade é menos do autor do que da editora, que não se preocupou em orientar uma adequada preparação de um texto acadêmico para que ele possa ser legível ao leitor médio brasileiro interessado na questão urbana, para além da meia dúzia de especialistas.
O livro divide-se em duas partes bem diferenciadas. Na primeira, árida, evidenciam-se os problemas acima apontados. Ribeiro discute, teoricamente, a relação entre a propriedade fundiária e o capital na produção da moradia, aprofundando o debate sobre a renda da terra na cidade, as condições que regulam o processo de produção e circulação da moradia e o papel dos diferentes agentes imobiliários: incorporador, construtor, instituições de financiamento e proprietário fundiário. Trata-se de um debate acadêmico que esteve em voga entre os anos 70 e o início dos 80, influenciado por autores como Lojkine, Preteceille, Topalov e outros da sociologia urbana francesa e pela preocupação em se criar uma teoria marxista da urbanização capitalista.
Na segunda parte do livro vamos encontrar a contribuição mais original de Ribeiro. A partir de uma bem documentada pesquisa, realizada em fontes inéditas, o autor elabora uma análise da formação do capital imobiliário no Rio de Janeiro e disseca as várias formas de produção da habitação na cidade, desde a produção rentista -com destaque para o famoso cabeça-de-porco, cortiço que abrigava a nascente classe trabalhadora no final do século 19- até a consolidação do capital de incorporação, que vai resultar nos condomínios fechados da Barra da Tijuca. Ribeiro mostra que a crise de habitação é estrutural e gerada por fatores como a escassez social da terra e sua apropriação injusta, a instabilidade dos financiamentos e a insolvência do mercado habitacional de baixa renda, marcado pelos salários insuficientes, que impedem o pleno desenvolvimento da produção capitalista da moradia, tornando inevitável a autoprodução.
Esta segunda parte é, indiscutivelmente, o ponto alto do livro de Ribeiro, contribuindo para o entendimento do processo da habitação no Brasil, a partir da realidade do Rio de Janeiro. Lamentavelmente, no entanto, também aqui se verifica a falta de cuidado editorial. Um texto rico de informações sobre a história urbana do Rio e sobre as diferentes modalidades de habitação que atenderam os cariocas no último século é acompanhado apenas de áridas tabelas e gráficos, sentindo-se falta de mapas (os que estavam na tese foram excluídos, aparentemente a única alteração realizada!), fotografias e outros elementos iconográficos que poderiam criar uma imagem mais concreta do processo de transformação do espaço habitacional de cidade e das suas formas de produção. Levando em conta a importância da imagem neste final do século, pode-se afirmar que essa é uma lacuna muito sentida no livro de Ribeiro.
No momento em que milhares de compradores de apartamentos se sentem desprotegidos por escândalos empresariais como o da Encol e da Sersan, compreender o funcionamento das incorporações parece ter ganho maior relevância e um público inesperado. No entanto, as preocupações de Ribeiro vão muito além disso, pois ele busca um referencial teórico e empírico capaz de demonstrar a necessidade de se democratizar o acesso à terra urbana, contribuindo assim para a luta pela reforma urbana, uma bandeira que ainda não sensibilizou o país como a reforma agrária, apesar de quase 80% da população brasileira morar (mal) em cidades.
Nabil Bonduki é arquiteto, professor da Escola de Engenharia de São Carlos (USP) e autor de "Origens da Habitação Social no Brasil" (Estação Liberdade).

Folha de São Paulo

UMA SELEÇÃO: DE PICASSO A SOULAGES


A lição do MAM de Paris
08/Ago/98
Aracy Amaral


A exposição de uma seleção do acervo do Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris no Museu de Arte Moderna de São Paulo provoca algumas considerações. Em primeiro lugar, por ser divulgada como mais uma exposição comemorativa dos 50 anos do MAM de São Paulo. Além disso, por ser o acervo de um museu -de 60 anos desde sua fundação- e que tem muito a ver, por essa seleção, com aquela de nosso familiar Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP. No entanto, por várias razões, inclusive o da sua não visibilidade, o MAC-USP de hoje parece esquecido de que possui esse acervo. Sob nova gestão esse museu por certo reaparecerá em breve. Porém, como sempre no Brasil, o último que falou é o único que disse. E, assim, admira-se com justiça a coleção vinda do acervo parisiense. Os meios de divulgação, inclusive o rádio, noticiam como esplêndida e única a mostra. Mas é preciso que saibamos apreciar, devidamente expostos, os tesouros que já possuímos entre nós.
O que se celebra este ano é a razão jurídica do MAM-SP ou o MAM enquanto entidade? Se é a razão jurídica -a marca MAM-SP-, então é correto celebrar os 50 anos de sua fundação. Se for enquanto entidade, torna-se mais discutível essa comemoração, pois o MAM, fundado em 1948, cessa de existir em fins de 1962, em decorrência da hoje criticável doação, feita por Francisco Matarazzo Sobrinho e Yolanda Penteado, de suas coleções à Universidade de São Paulo, que a partir de 1963 funda, em função do recebimento desse dom, o Museu de Arte Contemporânea da USP. Criticável, posto que hoje damos plena e total razão a Mario Pedrosa, último diretor do MAM antes de sua doação à USP, quando no discurso de despedida em São Paulo declarou em claro e bom tom: "Antes de mais nada é preciso afirmar-se e reafirmar-se que não se fecha nem se suprime museu, como não se fecham nem se suprimem teatros ou escolas, pois museu não é loja nem botequim" (1). Desta forma, o atual MAM-SP renasce com dificuldade devido à pertinácia de alguns inconformados com a doação à universidade, como os irmãos Pedroso D'Horta, devido aos Panoramas de Arte Brasileira, mostras realizadas anualmente a partir de 1969, e devido a um modesto acervo que busca reconstruir-se a partir da doação da Coleção Tamagni.
Assim, se o MAM desejasse comemorar-se enquanto entidade, teria de esperar até o ano próximo para celebrar seus 30 anos de atividades ininterruptas. Mas todos sabemos que, dentre os museus de São Paulo (ao lado da Pinacoteca do Estado, graças à dinâmica de Emanuel Araújo e depois de remodelada e ampliada à avenida Tiradentes por Paulo Mendes da Rocha), o MAM é o único realmente atuante hoje em São Paulo. Visibilidade perceptível na vontade e esforços do MAM em apresentar boas exposições, além de oferecer um espaço museológico e museográfico compatível com a contemporaneidade.
O interesse da exposição "Uma Seleção: de Picasso a Soulages (1905-1965)", sob a curadoria da equipe do MAM da Cidade de Paris (que preparou para o evento um catálogo correto, com seis capítulos para focalização das peças selecionadas, com textos e bibliografia sem autoria determinada, trabalho do "staff" do museu parisiense), nos remete imediatamente ao acervo do antigo MAM-SP: pelas obras selecionadas, pelo paralelismo e comparações que se podem fazer entre ambos acervos, assim como pela discrição da seleção de obras vindas a São Paulo.
Dizemos "discrição", pois o MAM da Cidade de Paris não nos enviou as mulheres dançantes de Matisse, nem um Picasso de maior importância, embora Matisse esteja representado por uma pequena, porém bela, pintura da fase de Nice. Até se poderia dizer, caso essa tivesse sido a intenção, que a escolha obedeceu a um desejo de interlocução, diálogo com a coleção de um museu como o MAC-USP. Entretanto, tenho sérias dúvidas de que a diretora Suzanne Pagés tenha idéia das preciosidades que o MAC possui em arte européia do começo do século até os anos 60.
Depois de uma introdução intitulada "História de um Museu Através de sua Construção", o catálogo (e a exposição) se divide em seis capítulos-segmentos: "Os Anos Fauves", "O Cubismo e seu Legado", "A Escola de Paris", "A Abstração Entre as Duas Guerras", "A Figuração Entre as Duas Guerras" e "Do Pós-Guerra aos Anos 60". Esta exposição que nos vem de Paris é convencional, mantendo talvez a mesma postura dos dicionários europeus de arte ou dos manuais de história da arte. Representa uma seleção do acervo a partir de artistas franceses -ou da Escola de Paris, como é o caso de Modigliani, Magnelli, Soutine, Sonia Delaunay ou Chagall-, omitindo-se artistas dos demais países, mesmo europeus, vizinhos da França. Ou seja: um ponto de vista bem europeu. Um museu italiano faria o mesmo a partir da Itália, assim como um museu espanhol a partir da Espanha.
A observação que nos vem é óbvia: como somos muito mais abertos a todos os países exatamente pela ausência de tradições fortes! Assim, no acervo do MAC, ao lado de Gleizes, Metzinger, Lhote, Matisse, Braque, Picasso, Léger -que não é, neste caso um Léger da série "Contrastes de Formas", como o do museu de Paris-, também possuímos em nossas reservas técnicas Chagall, Schwitters, Grosz, Picabia, André Masson, Laurens -alguns de época, como os três primeiros, e os últimos com obras dos anos 30 e 40. Ao mesmo tempo, é com orgulho que podemos dizer que, graças aos descendentes de imigrantes italianos em São Paulo, fazem parte desse mesmo acervo frequentemente esquecido obras significativas de Balla, Soffici, Boccioni -em bronze e gesso-, um dos mais belos trabalhos metafísicos de De Chirico, um excepcional auto-retrato de Modigliani dos anos 10, insuperáveis Magnelli de seu melhor período, além de Morandi, Capogrossi, Sironi, Campigli e Marino Marini, para só mencionar os mais ilustres.
Podemos até dizer que nosso Hartung é um modesto Hartung, perto daquele trazido por Paris, mas, no entanto, o Domela do MAC é bem superior, embora da mesma época do trabalho desse artista holandês trazido pelo museu parisiense. Esplêndidos os Gromaire, que não temos em nossas coleções; assim como os Dérain; porém, nosso Soulages é respeitável, assim como é suntuoso nosso Permeke, além de toda a abstração lírica da Escola de Paris do pós-Segunda Guerra Mundial (Bazaine, Bérard, Chastel, Manessier). Isso sem desfiar todo o elenco de artistas italianos dos anos 50 e 60 -como Turcato, Basaldella, Vedova, De Pisis, Guttuso, Fontana-, sem esquecer algumas obras tardias, porém dignas, dos anos 30 e 40 -de Sironi, Carrà, e mesmo Severini.
Obrigatória é a menção do núcleo construtivo suíço, alemão ou nórdico do MAC, que não vemos na coleção que nos trouxeram de Paris -como é o caso de Max Bill, além de Jean Arp, Sophie Taeuber Arp, Richard Lohse, ao lado de Camille Graeser, Kandinsky, Albers, Vordemberghe-Gildewart e Olle Baertling. É claro que não cabe aqui uma enumeração de todas as "estrelas" do MAC frente à bela exposição que nos visita. Mas é pertinente uma comparação, ou um diálogo, entre os acervos dos dois museus: um europeu, centrado em seu país de origem, a França, e o outro aberto para o mundo pela posição de país importador de cultura que é o Brasil -sede de uma bienal internacional de arte que em suas duas primeiras décadas podia oferecer prêmios de aquisição para obras que ficavam em coleção como a do antigo MAM, hoje acervo do MAC, com obras de artistas de quase todos os países da Europa, Japão, América Latina, além de alguns poucos dos EUA até meados dos anos 60.
Nossas autoridades não têm, como na França e em outros países do Primeiro Mundo, a preocupação em ampliar acervos, com aquisições regulares de obras contemporâneas, e assim dotar nossos museus de atualização permanente. Além disso, tampouco preservam um elevado nível de direção nessas entidades. Daí as trajetórias ora vacilantes, ora bem conduzidas de nossos museus, desprovidos de carreiras competitivas para que profissionais neles se desenvolvam enquanto intelectuais altamente qualificados.
Extremamente oportuna esta exposição para os que souberem "ler" a lição que nos passa o museu parisiense. Ela mostra organização e nível de continuidade que não mantemos mesmo em museus como o Masp, o MAC, a Pinacoteca ou o MAM, por incúria de governos e mecenas, em geral mais atentos em festejar o "vernissage" do que vem de fora, mas que não sabem zelar pelo que temos, e que deveriam oferecer condições de trabalho sem levar em conta a finalidade enganosa do "marketing".
O interesse desta exposição e o cuidado profissional no preparo de seu catálogo assinalam não ser esta uma mostra da obra "terminal" de um artista reconhecido. É positivo que todos percebam que não é um grande nome -como Monet, Portinari, De Chirico, Dalí ou Max Ernst- o que confere importância a exposições ou as torna decepcionantes, conforme as mostras destes artistas recentemente vistas entre nós, mas o conceito de sua curadoria, a seleção rigorosa de suas obras, o cuidado museográfico em sua montagem.
Nota
1. E continuou no mesmo discurso, que infelizmente a universidade não considerou: "Esperemos que os responsáveis pelo seu destino na universidade e no governo do Estado compreendam as formidáveis implicações, de ordem cultural, espiritual e até moral, da existência atuante e viva, de um museu com as tradições e possibilidades do nosso antigo Museu de Arte Moderna, e ajam em consequência" (Mario Pedrosa, "Depoimento sobre o MAM", fevereiro de 1967).
Aracy Amaral é museóloga, crítica e historiadora de arte; é autora e organizadora de livros sobre arte brasileira, como "Museu de Arte Contemporânea da USP: Perfil de um Acervo" (Odebrecht/MAC-USP) e "Arquitetura Neocolonial: América Latina, Caribe, Estados Unidos" (Fondo de Cultura Económica).

Folha de São Paulo

ENSAIO SOBRE A NOÇÃO DE PROFUNDIDADE NA MÚSICA: MOZART EM BEETHOVEN

ERIC ROHMER
Os olhos da ontologia
08/Ago/98
Jorge De Almeida

A defesa do diletantismo em questões de arte acaba sempre invocando uma suposta visão privilegiada do amador, que se arvora em herói da liberdade de opinião contra a tirania metodológica e os limites estreitos da abordagem dos especialistas. "Todo mundo tem o direito de falar de música", escreve o cineasta Eric Rohmer no prefácio de seu livro nada humilde sobre "a noção de profundidade na música".
Educado pelos programas de rádio que popularizaram a música erudita no pós-guerra, Rohmer é um ouvinte culto, que conhece os fundamentos da arte musical e acompanha a bibliografia básica sobre as obras que comenta. Apesar disso, faz questão de frisar a todo instante as qualidades de seu olhar inocente, capaz de "ensinar alguma coisa sobre a maneira como nos chega a música".
Mas o alegado propósito do livro é desvirtuado por uma tentação tipicamente francesa, aquele pendor para a teoria tantas vezes ridicularizado nos próprios filmes de Rohmer, mas aqui assumido sem o menor constrangimento. Logo nas primeiras páginas, o "olhar inocente" do autor defende a necessidade de uma "análise eidética" da música, única maneira de evitar as insuficiências da psicologia e da cronologia. O diletante torna clara sua intenção metodológica: "Meu procedimento é da ordem da ontologia, e não da linguagem".
E como atualmente todo mundo também tem o direito de falar de ontologia, Rohmer retoma vários clichês das histórias idealistas da música, concentrando-se na comparação entre a "profundidade cósmica" do pensamento musical mozartiano e a obra de Beethoven, que se localizaria "um grau abaixo da profundidade mozartiana", pois o "amor próprio da música" cede espaço à figura do compositor, que passa a considerar a música como meio de expressão da subjetividade, algo que a ontologia não vê com bons olhos.
Os comentários de Rohmer a favor de Beethoven são de fato paradoxais. Se nos últimos quartetos Beethoven chega a igualar a "profundidade mozartiana", isso ocorre somente graças à "alegria ontológica" que se manifesta nessas obras, "até mesmo nas passagens mais graves". E se Mozart proporciona um "prazer musical incomparável", o que salva Beethoven é, "além da cor orquestral, o fato de que sua música, dentre todas, é a mais agradável a meus ouvidos". Sem medo de chocar o leitor, Rohmer passa então a discorrer sobre o conforto auditivo da música de Beethoven, que superaria até mesmo o "jorro para a luz vertiginosa do ser" da sinfonia "Júpiter" de Mozart.
Coerente com sua qualidade de amador, Rohmer destaca a importância que o ouvinte dá ao tema, em oposição aos interesses profissionais do musicólogo, que "parece inspirar-se mais no desenvolvimento do que no próprio tema, pois do primeiro é possível dizer muita coisa, ao passo que o segundo se furta à análise". E nesse aspecto Beethoven sem dúvida é superado por Mozart, já que seus desenvolvimentos exigiriam, no entender de Rohmer, "uma pesquisa que parece demandar o concurso inevitável do computador e da ciência estatística". O fato de que nesse momento o romantismo se aproxime do "belo edifício matemático do 'Cravo Bem Temperado e da Arte da Fuga'±" não é problematizado, já que, ao olhar inocente do autor, "a história da música se deixa tranquilamente dividir em três períodos, e somente três: a modal, a polifônica e a harmônica, todas as demais divisões não sendo, no meu entender, fundamentais".
Tratando-se de uma abordagem ontológica da arte musical, a relação entre música e filosofia é um tema presente em todo o livro, mas não é desenvolvido na discussão das obras. A conquista da "profundidade" em Mozart e Beethoven seria análoga à revolução copernicana de Kant. O "tempo mecânico" da música barroca, segundo Rohmer, ganha vida ao intuir seu aspecto trágico: a música deixa de ser metafísica para se tornar ontologia. Rohmer se utiliza da história da filosofia com a mesma "profundidade" com que os personagens de seu filme "Conto da Primavera" discutem em um jantar o conceito de juízo sintético a priori, o que coloca mesmo em dúvida a intenção irônica da cena.
Em meio a tanta teoria, Rohmer consegue em alguns momentos se ater à proposta inicial do livro, narrando as experiências de uma audição que resiste a um mundo poluído musicalmente: "Mas que suplício pode ser maior do que o de se sentir perseguido, caçado, numa estação, hotel ou grande loja, pela música, até mesmo a mais bela -principalmente a mais bela- saída de alto-falantes tão diabolicamente instalados que o som, onde quer que se esteja, nos alveja com a mesma intensidade?".
Quando o pendor para a teoria não atrapalha, vislumbramos o ouvinte sensível e educado narrando a experiência da audição atenta de obras como os quintetos de Mozart e os quartetos de Beethoven, um ouvinte que acredita ser preciso "falar, e gostar de falar de música". Mas o entulho filosofante acaba impedindo que essa fala se transforme em uma conversa efetiva com o leitor. O discurso do diletante teórico é tão solipsista quanto a música que ele, por razões ontológicas, critica.
Jorge Mattos Brito de Almeida é doutorando no departamento de filosofia da USP.


Folha de São Paulo

MIKHAIL BAKHTIN

KATERINA CLARK; MICHAEL HOLQUIST
Os passos perdidos de Bakhtin
08/Ago/98


PAULO BEZERRA
Em relação a Bakhtin, acontecia entre nós uma coisa absolutamente "sui generis": bastante conhecido em teoria da literatura, linguística, antropologia, pedagogia e filosofia por intermédio de vários livros traduzidos (1), objeto de vários livros e ensaios publicados por autores brasileiros, ainda assim a sua personalidade continuava envolta nas trevas do desconhecido. O livro de Clark e Holquist vem lançar luz definitiva sobre essas trevas e criar um novo clima para os estudos bakhtinianos.
Conscientes das dificuldades de precisar o ponto de vista de Bakhtin sobre questões cruciais devido à falta de informações a respeito de sua pessoa, de construir um esboço claro de sua personalidade por meio de atitudes que respaldassem o seu modo de pensar, os dois autores tiveram de sair à procura do seu graal: fizeram várias viagens à ex-União Soviética; enfrentaram labirintos vasculhando arquivos; viajaram a diferentes lugares à cata de pessoas que tivessem convivido com Bakhtin ou ao menos pudessem dar alguma informação sobre ele; descobriram matérias publicadas em jornais do interior no período da Revolução; revolveram arquivos escolares, cartas inéditas e depoimentos de gente próxima ou distante, mas detentora de alguma pista que levasse a ele; em suma, realizaram uma espécie de restauração dos passos perdidos nas brumas de mais de meio século de história.
Como resultado conseguiram montar um impressionante painel do espaço em que Bakhtin conviveu, no qual se cruzaram sociedades religiosas com as quais ele teve contato próximo ou distante, correntes filosóficas, estéticas, político-ideológicas e sociológicas com que esteve em comunhão, polêmica aberta ou velada -enfim, construíram um cronótopo no qual as vozes que deram a tônica do século 20 se cruzaram, polemizaram, buscaram cada uma a sua supremacia, resultando daí ora a polifonia que mantinha as vozes convergentes ou divergentes em algum tipo de diálogo, ora o monologismo que, ciente de não conseguir colocá-las na sua "moldura concludente", procurava abafá-las quer pela proibição de que publicassem suas próprias obras, quer pelo silêncio da morte, mas sem nunca conseguir refutá-las porque, com diz Bakhtin, "matar não significa refutar".
Nesse grande cronótopo os autores contextualizaram a obra de Bakhtin, rastrearam as motivações da sua obra, dando, com isto, uma inestimável contribuição para melhor entendermos os movimentos de seu pensamento, a sinuosidade de sua reflexão. Nisto reside a contribuição principal do livro.
Comparado aos outros livros sobre Bakhtin, a maior novidade que este traz é estudá-lo como filósofo, e seus autores partem do estabelecimento de uma relação direta entre a obra bakhtiniana e duas vertentes de pensamento: um ramo da religião ortodoxa russa e a filosofia de Kant, mais especificamente o neokantismo. Tomando essas duas vertentes como substrato do pensamento de Bakhtin, eles fazem a "sua" leitura da obra bakhtiniana e procuram mostrar que o criador da teoria da carnavalização e do dialogismo escreveu com um olho na tradição do pensamento filosófico e estético e outro na sua atualidade, isto é, em polêmica com as duas.
Neste sentido, veio a ser de importância capital a influência dos estudos do helenismo na Rússia, o que marcou profundamente a formação de Bakhtin e, sem dúvida, refletiu-se decisivamente na sua teoria do romance, baseada na desintegração do gênero épico, na qual ele percebeu a germinação da prosa e seus primeiros passos nos diálogos socráticos e na sátira menipéia. Com a parodização dos antigos heróis elevados da epopéia e da tragédia na época do helenismo, essa desintegração culminou no surgimento de todo um campo de narrativas orais que ele chama de "grande território romanesco" e considera o ponto de partida do futuro gênero do romance.
Em face da nebulosidade que envolvia o nome de Bakhtin, durante anos perdurou a dúvida quanto à autoria dos livros "Marxismo e Filosofia da Linguagem", "O Freudismo e o Método Formal nos Estudos de Literatura", assinados os dois primeiros por Valentin N. Volochínov, o último por Pável Miedviédiev, amigos e discípulos de Bakhtin. Graças a um trabalho exaustivo de levantamento de informações, Clark e Holquist conseguiram mostrar que Bakhtin é o verdadeiro autor dessas obras e de outros textos a ele atribuídos.
Em "Mikhail Bakhtin", os autores dão menos espaço à teoria do romance e mais à da linguagem, por considerá-la filosofia e estabelecerem de antemão uma estratégia de leitura centrada na combinação de um pensamento baseado na tradição da religião ortodoxa russa e no neokantismo. Neste sentido, estudam categorias bakhtinianas como o dialogismo, a relação autor-personagem e a categoria de inacabamento (prefiro inconclusibilidade) numa perspectiva kantiano-ortodoxa.
A análise dessas categorias revela uma grande habilidade no trato de questões teóricas de extrema complexidade, como a percepção de que a categoria de simultaneidade é fundamental no pensamento bakhtiniano, o que está em perfeita consonância com a categoria de formação, núcleo central de todo esse pensamento, do qual derivam as categorias de "inacabamento" das personagens e seu mundo, de "grande tempo" e a própria concepção de romance como gênero em formação, nascido em plena luz do dia da história, esta um processo igualmente em formação e eternamente inconcluso.
Mas se a combinação das vertentes filosófico-religiosas lança luz sobre matrizes da reflexão teórica bakhtiniana, ela corre o risco de restringir essas matrizes com o desprezo de outras e moldar essa reflexão em um conduto estreito suscetível de resvalos reducionistas. Os autores fazem uma bela análise do dialogismo na relação entre simples falantes ou entre autor e personagens no processo de construção da obra literária. Mas, quando lemos que "Bakhtin logrou traduzir seus interesses teológicos numa filosofia do discurso", que sua meta era "repensar todas (sic!) as categorias do pensamento moderno em termos de tradição ortodoxa", que "o pensamento de Bakhtin é (...) uma meditação sobre os mistérios inerentes à ação de Deus fazendo pessoas"; "o caráter distintivo que a imagem de Cristo tem em Dostoiévski resulta no papel central da polifonia em sua ficção", "a relação dos autores com suas personagens é análoga às relações de Deus com as criaturas humanas" -nós nos deparamos com um reducionismo teológico que não podemos aceitar (embora encontre algum fundamento em um texto de 1919 que é estendido a toda a obra do autor sem considerar a sua evolução).
Quando lemos que "a polifonia dostoievskiana deve ser concebida em contraposição (sic!) ao significado mais amplo do diálogo na existência humana", vemos uma flagrante contradição com tudo o que Bakhtin afirma em "Problemas da Poética de Dostoievski" e toda sua reflexão posterior sobre dialogismo e polifonia, termos que traduzem a interação de vozes nos diálogos entabulados no universo social e representadas no romance. Esse reducionismo estende-se também à teoria bakhtiniana do romance e até mesmo à carnavalização, pois os autores consideram que Bakhtin construiu essa teoria em polêmica com a atualidade soviética, particularmente com o chamado realismo socialista.
Há em Bakhtin uma polêmica com a dialética hegeliana, particularmente com algumas de suas categorias. Para Bakhtin o eu só existe em interação com o outro, porque "ser significa ser para o outro e, através dele, para si mesmo". Na dialética de Hegel existe a categoria do ser no outro ("Anderssein"): trata-se do "seu outro", que se distingue do outro em sentido geral, não é uma oposição a qualquer outro, mas a um objeto rigorosamente definido, de onde o "seu outro" medrou como negação daquele. É claro que a solução de Bakhtin não passa pelo viés da dialética hegeliana, porque ele não opera com tese e antítese, mas com interação eu-outro. Bakhtin constrói sua teoria do romance também em polêmica com Hegel e em interação com Lukács, que vê o romance como algo em formação, como um processo, tese cara a Bakhtin.
A tradução é clara, vencendo com galhardia o desafio de traduzir um livro que inventaria a maioria das categorias do complexo pensamento bakhtiniano. Com exceção da manutenção do termo inglês "self" como tradução do "yá" (eu) russo, que a mim parece um elemento estranho no corpo do dialogismo, para o qual a palavra estrangeira já é um "outro" (e, por isso, o par "self"-outro se afigura "outro-outro"), o tradutor desenvolveu um trabalho complexo de recriação de neologismos russos já vertidos para o inglês.
Nota:
1. "Marxismo e Filosofia da Linguagem" (Hucitec), "Problemas da Poética de Dostoiévski" (Forense Universitária), "Questões de Literatura e Estética" (Hucitec), "A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento - O Contexto de François Rabelais' (Hucitec) e "Estética da Criação Verbal" (Martins Fontes).
Paulo Bezerra é professor de literatura russa na USP.


Folha de São Paulo

PENSAR A ECONOMIA EM PORTUGAL - DIGRESSÕES HISTÓRICAS

JOSÉ LUIS CARDOSO
A literatura mercantilista portuguesa
08/Ago/98
Antonio Penalves Rocha

Uma das novidades da historiografia portuguesa do nosso tempo reside nas conquistas de conhecimento obtidas pelas investigações no campo da história do pensamento econômico. Na dianteira delas atuam dois historiadores: José Luís Cardoso e António Almodovar, que aliás, a quatro mãos, lançaram no começo do ano "A History of Portuguese Economic Thought" (Routledge).
No entanto, José Luís Cardoso já havia publicado outro livro, "Pensar a Economia em Portugal", que merece ser apresentado não só pela qualidade do trabalho, mas também pelo que pode oferecer para a melhor compreensão de uma época em que o Brasil e Portugal formavam uma única entidade. Professor de história do pensamento econômico na Universidade de Lisboa, Cardoso escreveu também "O Pensamento Econômico em Portugal nos Finais do Século 18" (Estampa, 1989) e dirige um trabalho monumental de reedição, com dezenas de volumes já publicados: as "Obras Clássicas do Pensamento Econômico Português" (Banco de Portugal).
"Pensar a Economia em Portugal" tem a intenção manifesta de ser um livro dirigido "especialmente a historiadores e economistas" e reúne ensaios sobre o pensamento econômico português entre meados do século 16 e fins do 19, com o intuito de compreender, do ponto de vista histórico, os fundamentos da cultura econômica em Portugal.
No que concerne à organização formal do livro, seus capítulos derivam de dez ensaios que, por tratarem de objetos presentes em diferentes ocasiões da história, foram ordenados cronologicamente.
Os dois primeiros ensaios ocupam-se do pensamento econômico durante o primeiro século de vida do império colonial português. Inicialmente, "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto é submetido a uma leitura econômica, que permite ao autor extrair elementos para provar que a intensificação da prática do comércio português no Oriente, durante a segunda metade do século 16, gerou uma nova visão de mundo e uma "ética mercantil de feição individualista". Em seguida, textos de João de Barros, Pedro de Santarém, Fernão Rebelo e Damião de Góis são usados para testemunhar o aparecimento de um novo discurso ligado às mudanças econômicas e sociais decorrentes do comércio ultramarino. Cardoso descobriu nesses textos uma conceituação do mercado como lugar de realização de interesses individuais e públicos, uma compreensão embrionária da teoria quantitativa da moeda, a ponderação das vantagens e desvantagens dos monopólios e um esforço doutrinal para legitimar os ganhos individuais provenientes da atividade mercantil.
O livro prossegue examinando os textos da literatura mercantilista portuguesa. Primeiramente, trata das reflexões econômicas de escritores da segunda metade do século 16 -Padre Antônio Vieira, Manoel Severin de Faria e Duarte Ribeiro de Macedo- que, durante a guerra da Restauração, elaboraram propostas para recuperar a economia portuguesa e trataram dos temas recorrentes da literatura mercantilista como balança de comércio, impostos, população, moeda e indústria. A seguir, faz um exame das opiniões em Portugal, entre o último quarto do século 17 e primeiro do 18, sobre a relação entre luxo e possibilidades da manufatura portuguesa, demonstrando que houve também entre os portugueses uma "visão desapaixonada do luxo", parecidas com as posições assumidas por Montesquieu, Hume e Adam Smith sobre a mesma matéria.
Os capítulos 5 e 6 avaliam aspectos de uma nova fase do pensamento econômico português, marcada por manifestações de recusa do papel tutelar do Estado mercantilista. No estudo sobre as viagens e o mapeamento de Portugal e colônias, feitos para a obtenção de dados sobre o sistema produtivo e recursos naturais, o autor mostra que a vistoria dos peritos atendia a um dos imperativos da economia de mercado: a "tomada de consciência sobre a territorialidade da relações mercantis". No texto seguinte, encontra-se uma análise das oscilações da obra de J. J. Rodrigues de Brito entre o sistemas fisiocrático e o de Adam Smith e as relações que manteve com o modelo político do despotismo esclarecido.
A seguir, Cardoso revela um aparente paradoxo dos deputados das Cortes Constituintes de 1821 e 1822: ao mesmo tempo que recorreram à economia política de princípios do século 19 para projetar e legitimar mudanças econômicas e sociais, promulgaram, no fim das contas, uma legislação protecionista. Estudando os termos dessa oposição, o autor demonstra que os princípios da economia política liberal eram inaplicáveis a Portugal e os deputados apenas os subordinaram às circunstâncias históricas.
Os capítulos seguintes analisam a adaptação dos cânones da economia política à realidade nacional portuguesa. Solano Constâncio foi uma figura extraordinária do pensamento econômico português; não só fez a primeira tradução para o francês de Malthus, Ricardo e Godwin, como também escreveu sobre temas econômicos. Cardoso inventaria os pontos de convergência e divergência entre o pensamento de Constâncio e as leis que se pretendiam universais da economia clássica. Mas não é este o único autor português do século 19 que deu relatividade à economia política: de outro modo, Oliveira Martins fez o mesmo, conforme mostra o livro ao tratar de textos poucos examinados de sua autoria.
Esse perfil do livro parece ser suficiente para que se tenha uma idéia da diversidade dos objetos e dos métodos a eles aplicados por José Luís Cardoso. Tal diversidade, contudo, foi um procedimento conscientemente adotado com o objetivo de operar com a "interdisciplinaridade das ciências sociais e humanas". E ela não representa ameaça alguma à unidade do livro, alinhavada por determinados pressupostos teóricos que conduziram à investigação dos diferentes objetos: para o autor a história do pensamento econômico é considerada como uma disciplina de fronteira, empenhada na "1) verificação e reconstituição da evolução interna da ciência econômica e seus conceitos definidores; 2) compreensão dos sentidos da ação daqueles que mais decisivamente contribuíram para o avanço do conhecimento da realidade econômica, tendo em atenção as envolventes e condicionantes de natureza institucional, social e cultural; 3) contextualização histórica das vidas, discursos e percursos de autores do passado, que assim adquiram também o estatuto de testemunha de uma época que se transforma em objeto de investigação".
Por isso mesmo, o capítulo final desempenha um papel central dentro desse conjunto ao enfrentar a questão de por que de fazer uma história do pensamento econômico em nações que ocupam uma posição periférica em relação aos grandes centros de produção da teoria econômica.
Enfim, considerando a atualização da bibliografia, a riqueza das fontes históricas utilizadas e o rigor empregado na análise, "Pensar a Economia em Portugal" presta serviço relevante para consolidar a história do pensamento econômico como um ramo historiográfico em Portugal. Para nós, brasileiros, o livro também assume importância, pois, ao lidar com objetos que fazem parte de um patrimônio histórico que compartilharmos com os portugueses, fornece elementos para compreensão de aspectos do presente. A propósito, o ponto de partida dessa compreensão antecede a leitura do livro, muito embora dependa da sua existência, e está numa única e simples pergunta: por que não há uma história do pensamento brasileiro?
Antonio Penalves Rocha é professor do departamento de história da USP.


Folha de São Paulo

PROJETOS PARA O BRASIL

JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA
Nosso pai fundador
08/Ago/98
Carlos Guilherme Mota


Nesta quadra histórica em que tanto se discute a problemática da globalização, não por acaso publicam-se obras que reacendem a reflexão sobre a formação do pensamento nacional. Não por acaso, também, preenche-se agora uma lacuna significativa, com a edição desta importante coletânea com alguns projetos e idéias de José Bonifácio. Pois o silêncio à volta do patriarca deve possuir razões que a própria razão (palavra que ele tanto veiculou) desconhece, principalmente numa região do planeta em que se cultiva um acendrado conceito de cultura, cuidadosa com as "nossas coisas", "raízes", "retratos", "descobridores" e incontáveis "precursores". Ora, José Bonifácio foi um dos principais -para não dizer o principal- formulador de uma idéia de Brasil enquanto nação "in statu nascendi". Tudo o que estava no ar, inclusive a "utopia do poderoso império", para evocarmos o título do belo livro de Maria de Lourdes Viana Lyra, foi dialetizado pelo arguto Bonifácio.
Entende-se, nessa perspectiva, que a imagem do Patriarca não tenha sido muito cultivada pela República em seus começos, visto ter sido ele, embora reformista bastante avançado para seu tempo (mais que os republicanos da América do Norte), um monarquista constitucional de resultados (como se diria hoje). Após o golpe de Estado de 1964, o novo sistema se apropriou de sua imagem envelhecida e solene, em detrimento de lideranças revolucionárias da época da Independência, como o "enragé" Cipriano Barata de Almeida, ou o Frei Caneca.
Em contrapartida, os dois rebeldes respondiam mais aos reclamos históricos dos movimentos das esquerdas da época da ditadura, que erigiu Pedro 1º e Bonifácio como paradigmas, dessocializando-os e enfatizando seus "aspetos fortes", centralizadores e por assim dizer "nacionais". Já agora, quando tais autoritarismos vão ficando para trás (descobrindo-se outros, é verdade), parece iniciar-se o descongelamento dos "heróis de nosso panteão" e o reconhecimento de sua riquíssima e variada dimensão histórica e humana, surgindo novas abordagens, como a que Miriam Dolhnikoff oferece de nosso ilustrado fundador.
Hoje, conhecem-se melhor os altos e baixos da vida de Bonifácio e tem-se acesso aos seus projetos para o Brasil, tudo apreciado em dimensão menos mítica. Sabe-se mais sobre sua infância em Santos e adolescência nas bibliotecas religiosas em São Paulo, depois suas viagens de pesquisa na Europa, inclusive na França revolucionária. Para o estudo de sua formação ideológica, conhece-se o entrevero com a Inquisição e os embates com forças de toda ordem (indo para o exílio, em charrua precária, foi perseguido à morte pela polícia francesa de Chateaubriand, tendo sido salvo de afundamento em Vigo), inclusive no exílio e, mais tarde, no ostracismo, suas diferenças com republicanistas. E se esclarecem lances dramáticos de sua vida, como a segunda viagem de retorno ao Brasil na volta do exílio, quando morre a bordo sua mulher, a irlandesa Narcisa O'Leary. Da mesma forma, sua atividade de poeta árcade e publicista iracundo, a relação com os irmãos (era sogro de seu próprio irmão Martim); a condição de dono de imensa biblioteca, marcado por espírito brincalhão e dançarino; os desencontros e reencontros com os Braganças; seu conceito de poder, de universidade e seu altíssimo prestígio internacional; o conspirador na velhice e, finalmente, a morte em Niterói desse artífice da construção nacional.
Sabemos que a "Nação" é uma construção ideológica, mas que se fabrica com ingredientes, receituário e embates de cada época: para equacionar os conflitos do império, Bonifácio, como se percebe nesta coletânea, foi um dos principais forjadores de uma idéia original de povo, de território, de Estado, de cultura e de diplomacia (ele pode ser considerado o pai de nossa política externa). Não por acaso, suas leituras incluíam, além de mineralogistas e químicos, escritores e pensadores que também pensaram o Estado, a política e a cultura, dos clássicos -Tito Lívio, Tácito, Plutarco, Sêneca e Cícero- a Voltaire, Fenélon, Gibbon, Schelling, Herder, Hume. Nota-se mais: detestando os clérigos e criticando os hábitos portugueses, e apesar de sua formação européia, tinha um olho posto nos EUA, nação republicana construída por intelectuais-políticos do porte de Franklyn e Jefferson.
Com estes "Projetos Para o Brasil", retorna à pauta de discussões a antiga "questão nacional". A publicação de textos do punho de Bonifácio inclui estudos sobre a abolição da escravidão, sobre os índios, Estado, a propriedade e reformas, povoamento e "caráter dos brasileiros" (e portugueses), sobre liberdade, Constituição e revolução, sobre a nobreza, Pedro 1º ("rapaz mal-educado") e o Estado político da jovem Nação, sobre economia e pobreza. E uma série de reflexões quando menos curiosas sobre literatura e o ofício de escritor, sobre filosofia, religião, mulheres, além de notas pessoais sobre leituras, sobre seu "temperamento férvido" e pensamentos soltos de valor discutível. Abre a coletânea um excelente estudo introdutório da organizadora, em que aprofunda análise anterior, "O Projeto Nacional de José Bonifácio", publicada nos "Estudos Cebrap", nº 46 (1996): demarcando seus horizontes ideológicos, constitui atualmente uma das principais súmulas sobre o conceito de política do Patriarca.
Com efeito, José Bonifácio, filho do século 18 e homem da Ilustração, foi o principal articulador de nossa Independência. Suas teorias sobre o Estado, sobre a necessidade de reformas, mas também seus limites, derivam não apenas de sua formação nas bibliotecas de São Paulo, Coimbra e Paris, mas de um invejável conhecimento do mundo, que adquiriu enquanto viajante nos quadros do reformismo ilustrado, capitaneado por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, seu aparentado. Bonifácio, por seus textos, propostas, observações e muita vivência, pode ser considerado uma das maiores personalidades de seu tempo. Conhecido como o "nosso Doutor Franklyn", misto de sábio-viajante, cientista (era eminente metalurgista) e político, Bonifácio traduziu textos de Von Humboldt, conviveu e carteou-se com algumas das figuras mais eminentes da ciência da época, ligadas às linhas mais fortes do pensamento de então.
Tendo entrado tardiamente no jogo político, conseguiu desenhar, no curto período de dois anos, toda a política externa brasileira, além das bases preliminares para a existência do novo Estado. Difícil avaliar a quantidade e densidade de seu trabalho como homem de Estado, dada a enorme e fecunda documentação que produziu nesse período, que inclui cartas, decretos, mensagens e uma gama variada de anotações, papéis, bilhetes pessoais. Depois da Constituinte, alijado do poder e já no exílio em Talence, não pararia de escrever, deblaterar, conspirar, em situação financeira bem precária, opondo-se ao centralismo nada democrático do imperador Pedro. E, como se não bastasse, sendo brutalmente hostilizado -como sempre foi- pelos negreiros, os comerciantes de escravos, cujos interesses dificultaram a inserção do Brasil enquanto país independente no concerto internacional.
Esta coletânea, ao tornar acessível as idéias do fundador, dá pistas para a construção de uma certa idéia de Brasil, ou da "gênese de sua identidade", para retomarmos uma expressão de István Jancs•, o autor de "Bahia, Contra o Império" (Hucitec). Lendo o paulista, constata-se que, um século e tanto depois, Gilberto Freyre pouco inovou em termos de teorias de miscigenação ou que a iracúndia de Darcy Ribeiro não foi tão "radical" assim. Quanto ao que interessa, a história de nosso "founding father", o fato é que pouco avançou a historiografia andradina após os estudos de Otávio Tarquínio de Sousa e Vicente Barreto e as edições de textos providenciadas por Edgard Cerqueira Falcão e Octaciano Nogueira.
Mas permanece o enigma histórico-ideológico: por que a vida, a obra, as idéias provocativas e anticonvencionais (para sua época, está claro) permanecem ainda hoje à sombra, ao mesmo tempo em que seu nome se inscreve, em quase todos os manuais escolares, em todas as cidades do Brasil, nas praças, ruas e escolas, em Havana ou Nova York? Em que encruzilhadas do tempo se situam os desencontros entre o imaginário e a mitologia e os processos histórico-concretos que conduziriam -ou conduzirão- à emancipação do país enquanto povo civilizado? Ou, melhor dizendo, como reescrever essa caminhada em busca de uma sociedade democrática, cultivando ao mesmo tempo os valores culturais gestados ao longo do processo histórico e a sintonia com a diversidade que vanguardas mundiais nos trazem, como no tempo da Independência? Afinal, o pai-fundador da nação brasileira, na verdade um "avô" patriarca, distinguia-se por sua formação cosmopolita e uma mentalidade bem internacionalista.
Carlos Guilherme Mota é historiador, professor da Universidade Mackenzie e autor, entre outros livros, de "Idéia de Revolução no Brasil, 1789-1801" (Atica).

Folha de São Paulo

RENTE

JOÃO BANDEIRA
Uma poética da simetria
08/Ago/98


Alberto Martins
O contato do leitor com a poesia de João Bandeira, nesta que é a primeira coletânea de suas obras, se inicia já mediante a capa. Uma foto ampliada da pele do antebraço do autor cobre frente e verso do volume e ambas as orelhas. Sobre essa extensão cinza-azulada, que pode lembrar tanto o movimento das ondas visto à distância como as nervuras de uma folha vistas de muito perto, se destaca -impresso em laranja e estampado em alto-relevo- o título: "Rente".
Uma rápida incursão pelo interior do volume confirma a apresentação. O uso apurado de tipologia, recursos gráficos, espaçamentos, transparências, fotos, reflexos e espelhamentos anuncia de forma incisiva que, tanto quanto a natureza fono-semântica da língua -que se faz presente em belos e breves poemas no início do livro-, interessam ao autor os recursos visuais e táteis que possam a ela se associar. Como se, voando rente à superfície do código verbal, o poeta colhesse aí núcleos, pausas, pontos, lacunas e possibilidades, onde -como nota Arnaldo Antunes na abertura- "o ar entre as palavras faz atentar para cada sentido que passa à procura de um sentido que passa por outro sentido que. Quase pousa".
Construída assim de pausas e deslocamentos, de plasticidade e música, é preciso observar que a poesia de João Bandeira realiza, com grande habilidade, aquilo a que se propõe realizar. Uma sensibilidade apurada se revela tanto no emprego da sonoridade, em que cada sílaba soa por si com nitidez musical, quanto na disposição de elementos gráficos, ou ainda no uso de contrastes e cores, como no forte poema "Lúcia/ lux". Fundamental, neste sentido, é o esmerado acabamento do livro, que não constitui aqui adorno ou luxo vazio, mas sim fidelidade ao projeto estético do autor.
No entanto, aquilo que é qualidade, por um lado, bem pode ser problemático, por outro. O primeiro poema de "Rente", que tem por título o sinal gráfico ":", vai direto ao cerne da questão. No centro da página, alongados em intensa anamorfia, oito ou nove caracteres se apresentam a tal ponto distorcidos que a frase que compõem se mostra, à primeira vista, ilegível. O leitor terá que atravessar o ritmo quase hipnótico da distorção (cujo efeito final lembra muito um código de barras, pontuado por acentos agudos) para descobrir que tal tratamento visual vem corroborar o espelhamento sonoro já existente na proposição -que, afinal, se decifra: "O eu é o nó ou nós o é".
A simetria, como se vê, será um procedimento central dessa poética. Mas as possibilidades do espelhamento entre o eu e a língua, entre a língua e o mundo, entre a língua e a língua -e corro aqui todos os riscos de cometer um equívoco- se limitam a uma economia de cunho narcísico. Só nesse regime, a linguagem será espelho e, então sim, todos os jogos do espelho serão jogos de linguagem -a desnudar ao todo um tesouro de possibilidades verbo-virtuais. Acervo riquíssimo, sem dúvida, mas que se reduz à espessura da lâmina de uma superfície: aquela que reflete.
Uma vez fora do raio desse foco, adquire uma complexidade de outra natureza o modo pelo qual a linguagem se inscreve no mundo e o mundo se inscreve, se representa e se presentifica na linguagem. É aí que a língua, sob a pena de encerrar-se num brilhante jogo de reflexos que passa ao largo da realidade, terá de dar abrigo a todas as opacidades -desejáveis e indesejáveis-, como o outro, os outros, o tempo, a história. No fundo, o que se quer indagar aqui é se, ao operar tão "rente" à superfície do código, ao investir alta dose de sua energia poética na investigação das superfícies, de seus ecos e desdobramentos, não estaria o poeta deixando escapar possibilidades de uma operação mais abrangente sobre o real.
Talvez seja o caso do poema XX, onde dois "x" traçados à mão em vermelho vivo, numa gestualidade que reconhecemos facilmente como do "nosso século", se abatem sobre o "c" e o segundo "u" da palavra "seculum", grafada em sóbria tipologia romana. A intensa carga de cancelamento, obliteração e rasura dos "x", aliada à expressividade do gesto e da forma, convocam imediatamente a noção de diferenças, se é que não de confronto e superação, entre os tempos. Como se o vermelho e o violento século "XX" só afirmasse a sua própria temporalidade ao relegar a um segundo plano, estático, de letra morta, a experiência da antiguidade que o precedeu.
Mas, como cinco letras permanecem visíveis, também podemos pensar não no cancelamento puro e simples da experiência precedente, mas numa atualização via destruição parcial -o que, de resto, não estaria longe de corresponder à verdade ou, pelo menos, a uma parcela de verdade do que foi a operação cultural moderna.
Em ambos os casos, no entanto, o modo pelo qual as operações da cultura, da economia e da vida em sociedade rasuraram a experiência dos século anteriores, e de que forma isto acabou moldando concretamente a experiência do próprio poeta e de seus semelhantes -ou dessemelhantes-, tudo isso permanece intocado pelo poema.
Não se pretende aqui que tal objeção esgote as qualidades ou o âmbito das proposições de "Rente"; nem -muito menos- que sejam desconhecidas do próprio autor. Antes, ao contrário: paralelamente à extremada consciência da linguagem, em mais de um momento ponteiam ao longo do livro as críticas à condição narcísica, à alienação da subjetividade numa sociedade de consumo ou, ainda, o seu reverso -o forte veio lírico que sobressai nos poemas que se referem à percepção da amada ou da natureza. Tudo isso, no entanto, ainda não é forte o suficiente para contrapor-se ao fascínio que o autor experimenta pelas operações de superfície. Mas será este, na nossa opinião, o principal desafio que João Bandeira terá de enfrentar, depois deste livro promissor.
Alberto Martins é artista plástico, poeta e autor de "Poemas" (Duas Cidades).


Folha de São Paulo

OS MELHORES POEMAS DE DANTE MILANO

Bilhete de suicida
08/Ago/98
Heitor Ferraz

Manuel Bandeira dizia que a poesia de Dante Milano era como bilhete de suicida. Quase todos os poemas parecem mesmo ser o último, o definitivo, fechado em si, como um pequeno e bem acabado estojo, por onde circulam amor, morte e solidão -temas centrais dessa poesia. Milano nunca se desligou das formas fixas, do gosto clássico, manejava o verso com enorme naturalidade, não deixando arestas ou palavras bicando a página. Tudo, em sua poesia, se resolvia num arredondamento do poema. Mas, mesmo com todo esse talento, ainda é pouquíssimo conhecido.
Milano foi, entre os poetas desse século, o mais arredio à publicidade de seu trabalho, tanto é que seu primeiro livro foi publicado um pouco à sua revelia, como contam seus colegas e os especialistas em sua obra. O livro saiu em 1948, quando Milano estava beirando os 50 anos. "Um amigo, Queirós Lima, pediu-lhe emprestado os originais e levou-os para a Imprensa Nacional. Cerca de dois meses depois reapareceu com as provas e solicitou ao poeta que fizesse as emendas. Mas estas foram tantas que a Imprensa Nacional recusou-se a publicar o volume", conta Ivan Junqueira, na introdução deste volume. "Um ano depois, entretando, em 1948, o livro foi editado pela José Olympio, tornando-se, como na época se comentou, o maior acontecimento literário do ano, tendo recebido o Prêmio Filipe de Oliveira."
Surgiram outras edições, porém a definitiva só apareceu em 1979, organizada por Virgílio da Costa, acrescida de poemas inéditos, das traduções que Milano fez de Dante e Baudelaire, além de ensaios, crônicas e uma boa fortuna crítica, com textos assinados por Sergio Buarque de Hollanda (responsável pela mais bela análise feita sobre a poesia de Milano), Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, Franklin de Oliveira e Augusto Frederico Schmidt.
Milano, que morreu aos 91 anos, em 1991, foi de fato um poeta atípico dentro do modernismo brasileiro. Muitos críticos preferem dizer que ele não poluiu sua poesia com os cacoetes modernistas, que soube preservá-la da linguagem misturada e despojada do período; que o movimento modernista veio encontrá-lo, em 1922, com o gosto e poética formados. Entretanto, sempre gerou curiosidade sua não adesão ao modernismo, já que ele conviveu e foi muito amigo de Manuel Bandeira, Aníbal Machado, Portinari, Villa-Lobos e tantos outros.
Provavelmente a linguagem coloquial, a busca de temas urbanos, a mistura com a fala e a cultura populares não se enquadravam com sua visão de poesia. Milano foi um poeta da essencialidade, sua linguagem, como salientou Sergio Buarque de Hollanda, no ensaio "Mar Enxuto", "aprimorada na familiaridade com os italianos do Trezentos e do Quinhentos, com o lirismo camoniano, com as experiências do simbolismo e do pós-simbolismo, não tinha certamente o que perder, mas também não tinha o que ganhar da vizinhança imediata daqueles revolucionários".
Porém, é importante notar como essa vizinhança deu à poesia de Milano uma linguagem mais clara, límpida, também sem os cacoetes da oratória parnasiana. E abriu sua obra para diálogos interessantes. É comum na leitura de seus poemas, mesmo os que se encontram na atual antologia feita por Junqueira, perceber que Milano manteve vivo diálogo com seus contemporâneos, como Bandeira, Drummond e Murilo Mendes.
Em uma de suas seções, "Terra de Ninguém", Milano se mostra um poeta sensível aos acontecimentos de seu tempo. Solapam em cada página visões de guerra, com todo um arsenal linguístico que muitas vezes nos remete às imagens desconcertantes de Murilo Mendes, como "as sirenes uivam desvairadas" ou "um vulto debruçado sobre as águas/ contempla o mundo náufrago". Nessa série, representada com seis poemas na atual antologia, o poeta -que nunca se rendeu aos fatos, a ponto de citá-los claramente, como acontecia em Drummond, em "Rosa do Povo"- mostra-se perplexo diante da guerra, não a pontuada Segunda Guerra Mundial, mas o fenômeno em si da guerra e da impossibilidade de a poesia conter toda essa violência: "Cala, poesia,/ A dor dos homens não se pode exprimir em nenhuma língua".
Como homem do seu tempo, a convivência com esses amigos o ajudaram a formar uma das linhas de força de sua obra. Isso se deu, por exemplo, no contato com seu companheiro de boemia carioca, Jaime Ovalle, bastante conhecido tanto pelas crônicas quanto pelos poemas a ele dedicados por Manuel Bandeira. Ovalle, que Bandeira chamava de "o místico", acabou inspirando um conto de Dante Milano, "O Manequim", em que o poeta conta a história de um sujeito que caiu de amores por uma manequim vestida de noiva, "um buquê nas mãos, o olhar extático, a boca entreaberta".
Essa história tem sua origem num fato real, como o próprio poeta contou em entrevista a Denira Rozário: "Ele (Ovalle) realmente se apaixonou por esse manequim e passava todas as tardes para vê-lo, depois de sair do trabalho. (...) É isso que, mais ou menos, significa um amor sem objeto, e era um amor verdadeiríssimo".
E é "mais ou menos" essa a concepção amorosa que encontramos na poesia de Milano, "amor, amor sem objeto,/ que anda à procura de amor". Ou, como disse em outro poema, em homenagem a Camões: "Através de imitado sentimento,/ Ao ler-te, quanta vez tenho sentido/ Como é muito maior o amor vivido/ Em ato não, mas só em pensamento". Em mais de um momento nessa poesia o amor não "se expande em dois", "mas arde solitário". É um amor pelo conceito do amor e pelo o que é belo em si mesmo. Como alguém que parasse diante de uma estátua e a admirasse.
Esse amor pela escultura, em Milano, parece ser extremamente importante: a sua construção poética sempre é muito plástica, com aquele "minuto vivo de beleza", de que falava Mário de Andrade sobre a arte da estatuária. Vale lembrar de passagem que o próprio poeta se dedicou à escultura, chegando mesmo a confeccionar o busto do poeta Manuel Bandeira e alguns outros. Com essa plasticidade, o poeta arma paisagens, imaginárias ou não, para dar fluxo ao seu pensamento poético e desencantado do mundo.
Seu horizonte está sempre habitado por "nuvens, montanhas de expressões distantes", "uma nuvem -um monumento/ Em memória do esquecimento". Essas e outras imagens são "imagens recorrentes de perplexidade de um ser desmemoriado, perdido em si mesmo, errante nas distâncias desproporcionadas de uma terra de ninguém", como escreveu Davi Arrigucci Jr. no artigo "Dante Milano - A Extinta Música" (Folha de 20/4/91).
A atual antologia traz uma amostra dessa poesia de versos claros e plásticos, que procurou dar forma a um pensamento original. Porém, o leitor de Milano sente falta de alguns poemas importantes, como "Jardim Público", "Paragem" (que dialoga com os bois da poesia de Drummond de Andrade), "Passeio de Mãos Dadas", "Enumeração" e "Duplo Olhar", só para ficar com alguns. Mas antologia é antologia, e o que as rege é o gosto pessoal do organizador. De qualquer forma, "Os Melhores Poemas de Dante Milano" é uma bela porta de entrada nessa poética ainda pouco conhecida e que é sem dúvida uma das mais belas da poesia brasileira moderna.
Heitor Ferraz é jornalista, poeta e autor de "Resumo do Dia" e "A Mesma Noite".


Folha de São Paulo

PRIMEIRO ATO, CADERNOS, DEPOIMENTOS, ENTREVISTAS

O padre e o anarquista
08/Ago/98
José Antonio Pasta Jr.

PRIMEIRO ATO, CADERNOS, DEPOIMENTOS, ENTREVISTAS; JOSÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA; GUERRA SEM BATALHA - UMA VIDA ENTRE DUAS DITADURAS ; HEINER MÜLLER
Heiner Müller, quando veio ao Brasil, no final da década de 80, tinha um encontro marcado com o Teatro Oficina, isto é, com José Celso Martinez Corrêa. Se bem me lembro, por algum motivo acabou não comparecendo, indo jantar em outra parte. De certo modo, esse encontro se dá agora nas livrarias, com o lançamento simultâneo de dois livros-documento que expõem a trajetória de cada um deles. São, ambos, documentos de primeira ordem e, na mão de gente disposta, podem ajudar na alteração das perspectivas vigentes. A sua conjunção também é propícia, porque cria possibilidades de comparação em um terreno no qual são escassas. E, no caso, comparar pode ajudar a evitar mitificações e juízos rasos, estes, sim, abundantes.
Todavia, compará-los a seco, apesar de instrutivo, seria covardia, como se vê logo à primeira leitura. De saída, por conta do diferente grau de unidade dos materiais. Embora ambos os livros sejam documentais e tenham feição biográfica, o extenso depoimento de Müller, feito no auge de sua maturidade e refletindo já as últimas reviravoltas do destino alemão, tem uma dimensão propriamente autoral que não caberia pedir ao livro de Zé Celso, que reúne documentos, entrevistas e depoimentos de épocas diversas, inclusive recentes, mas enfocando apenas o período de 1958 a 1974. Muitas das mais célebres e momentosas manifestações de Zé Celso encontram-se reunidas aí. Mas a real desproporção entre os livros é menos fortuita e, mais uma vez, pouco lisonjeira para o sentimento-de-si nacional, porque diz respeito ao grau de densidade reflexiva e à dimensão de consequência presentes nos materiais.
Por mais irônicas e desencantadas que sejam as reflexões de Müller, nelas se ouvem ecoar, é verdade que em nota discreta e geralmente negativa, a "Dramaturgia de Hamburgo", de Lessing, a goethiana "Missão Teatral de Wilhelm Meister", as reflexões teatrais de Schiller e Hegel (notadamente no que se refere a Shakespeare), Benjamin, mais algo do viés ultranegativo dos frankfurtianos do pós-guerra e, bem ali ao pé do autor, a presença impressionante do legado de Brecht, que, de certo modo, já reúne em si os anteriores e os leva ao limite. No livro de Zé Celso, essa espécie de terceira dimensão da reflexividade -sua profundidade cultural- praticamente inexiste como tal, e essa ausência poderia ser bem representada por uma perdida referência -aliás equivocada- ao padre Anchieta. Não que o livro do brasileiro não esteja cheio de referências, mas, submetidas a uma espécie de descarte contínuo, elas não formam nenhuma figura, numa deriva que parece não remeter a nada além de si mesma.
Note-se que essa desproporção incide menos, em primeira instância, sobre o homem de teatro Zé Celso do que sobre algo que, em comparação, não se pode deixar de sentir como uma deficiência da cultura nacional, que o inclui e ultrapassa. Sensível em todas as áreas, artísticas ou não, esse déficit é particularmente agudo no teatro, e jamais deixei de achar tão impagável quanto significativo que uma de nossas melhores e mais conhecidas histórias do teatro -o "Panorama do Teatro Brasileiro", de Sábato Magaldi- incluísse um capítulo intitulado "Vazio de Dois Séculos".
Numa conta em que os séculos mal chegam a cinco, é um vazio bem grande, e logo se vê que, para se avaliar o teatro brasileiro, ainda mais do que a literatura, é preciso lançar mão daquele "socorro do relativismo histórico", de que já falava Lúcia Miguel Pereira a respeito de nossa precária formação, advertindo que não se lerá "A Moreninha" pelo mesmo diapasão de "Guerra e Paz". Nesse caso, o massacre seria inevitável, mas, pior que ele, talvez fosse a completa perda de perspectiva.
Por isso mesmo, essa desproporção que o contraste dos livros traz à tona indica a necessidade, tão aparentemente óbvia quanto desatendida, de se perspectivar o trabalho de Zé Celso, de projetá-lo no conjunto de uma cultura com cujas deficiências, vazios e desequilíbrios ele interage intensamente, independente do grau de consciência. Talvez assim se pudesse compreendê-lo e criticá-lo, finalmente, não adorá-lo nem, muito menos, execrá-lo.
Este livro mesmo, todo feito de golpes e contragolpes, mostra que o caráter acintosa e incessantemente provocador de sua atitude não cessa de gerar respostas igualmente imediatas e polêmicas, quando não truculentas -sempre em prejuízo da perspectivação. Zé Celso parece urgido por uma permanente luta de morte, que só conhece extremos. O mais interessante é verificar que essa perspectivação parece não interessar ao próprio Zé Celso, que foge dela como o diabo da cruz. Que o diga sua irritação com Décio de Almeida Prado, que tratava de fazê-la. Dificultá-la é parte essencial -não sei se consciente- de sua estratégia: o caráter sempre absoluto -e finalmente messiânico-, invariável nos seus textos, opera sempre em terra arrasada, numa espécie de "tabula rasa" incessante.
Esse mecanismo instala Zé Celso numa boca de cena perpétua, sem fundo, em que ele aparece, queira-se ou não, como a síntese encarnada dos tempos, quase uma aparição, que ofusca e sidera. Parte de seu encanto (real) vem daí, mas que isso não sirva para isolá-lo ou indigitá-lo: esta pulsão de encantamento, que nele parece responder a uma necessidade veemente, é tão nacional quanto nacionalmente desconhecida. Está em toda parte, e talvez seja a estranha familiar mais desconhecidamente ilustre da cultura brasileira. Que ela apareça de maneira tão gritantemente teatral, quase obscena, em Zé Celso, é um sintoma cultural de primeira ordem e, afinal, menos maligno que seu oposto simétrico -a majestosa e augusta encenação da própria intangibilidade que, como se sabe, gera uma infinita demanda de reconhecimento, à qual é inerente a procura do bode expiatório, que açula a ralé.
Ainda aqui, a comparação com o depoimento de Müller pode ser instrutiva, pois, com todas as diferenças, ambos se desenham sobre um fundo comum de aguda descontinuidade cultural: Müller sobre a ancestral e renovada "miséria alemã", marcada neste século por duas guerras mundiais, duas ditaduras e uma reunificação tendencialmente regressiva; o nosso Zé Celso, sobre o fundo da tradicional fratura e inorganicidade de nossa cultura, repostas neste século pelas modernizações conservadoras, induzidas por duas ditaduras e pela atual decomposição ultramercantilista do precário tecido sociocultural. Ambos os autores não cessam de enfatizá-lo. Mais que curioso, é talvez decisivo ver como reagem: Zé Celso, que percebe com agudeza o caráter fraturado e letárgico, "voduzado', "fajuto", "encantado" da cultura brasileira, põe-se declaradamente numa atitude, digamos, de permanente parturição cultural -é preciso sacudir esse corpo letárgico, chocá-lo, finalmente exorcizá-lo, para que revenha de sua possessão maligna e aceda finalmente a si mesmo. Quer, assim, de algum modo, edificar uma cultura, mas o faz sem reatar com coisa alguma mais que por um breve instante, e sem reatar nem sequer consigo mesmo, numa descontinuidade formidável, em que nenhuma real dimensão de projeto se articula.
Contra a descontinuidade, reage com o hiperdescontínuo e quer edificar pela destruição permanente, o que o instala em uma espécie de presente perpétuo (de que é signo a adolescência interminável), que retira da história e o vota, desde sempre, ao mito e ao rito. É de natureza mágico-religiosa o dispositivo de Zé Celso -"a bruxaria que é o teatro", "transação sagrada", "teatro de religação", "o sagrado brasileiro", "homens eletrificados pela Terceira Pessoa do Santíssimo Mistério da Divina Eletricidade" etc. Entre o demiurgo, o sacerdote e o sacrificado, Zé Celso combate o vodu pela bruxaria.
Este livro mostra que foi dos poucos artistas, entre nós, a perceber a real expansão do fetichismo da mídia nas últimas décadas, à qual no entanto, opõe um teatro... de feitiçaria. É possível que o sacerdote José Celso, com brilho inegável, celebre o que o destrói. Não é à toa que, nos últimos tempos, se tenha visto como inimigo jurado da Igreja: é concorrência. Seus modelos mais profundos são a Igreja e o padre. No livro, conta-se que sua família o queria padre. Ao seu modo, cumpriu o desígnio -e deu uma espécie de padre da destruição. Não é, por isso, pior do que os outros.
Já Heiner Müller não proclama qualquer projeto construtivo. Ao contrário, aceita tranquilamente que, a certa altura, o chamem de anarquista. Nenhum valor sólido, nenhuma ilusão, pessimismo negro em toda a linha, o que faz, de imediato, pensar no cenário dito pós-moderno. Mas, se olharmos bem, encontraremos meio escondido um bom e velho alemão da "Bildung", obcecado pela construção da cultura nacional.
A referência a Brecht -que em Zé Celso é uma das muitas momentaneamente instrumentalizadas para descarte rápido (com a caução costumeira da leitura tropicalista da antropofagia oswaldiana)-, onipresente nele, permite observá-lo. Escolheu morar em Berlim Oriental "porque Brecht estava lá" e, de certo modo, concebe toda sua obra como uma tentativa de "responder" a esse antecessor. Por não ser brechtiano escolástico, soube perceber o caráter "subversivo" de Brecht -e, note-se, subversivo pelo seu marxismo e pela sua "excelência". Pelo testemunho de Müller, que não foi um "familiar" de Brecht, aproximar-se efetivamente dele não era aceder ao mandato social, como se quer agora, mas participar de seu isolamento compulsório e orquestrado. Todavia, onde talvez se dê a ver mais nitidamente sua obsessão pela "Bildung" é na capacidade de perceber a maquinação surda e precisa do regime para "evitar sucessores para Brecht", "a luta contra Brecht e suas consequências".
Não é ver pouco, quando se pensa que, entre nós, com muito menos repressão policial, processos semelhantes estão em pleno curso nos meios culturais e institucionais, sem que pareçam dar-se conta os principais interessados. Mas, talvez, estejamos de novo diante das vicissitudes das diferenças de densidade entre as culturas, aquelas mesmas que as fazem opor, sobre um fundo parecido, um padre anarquista a um anarquista construtivo.
José Antonio Pasta Jr. é professor de literatura brasileira na USP e autor de "Trabalho de Brecht" (Ática).

Folha de São Paulo